Participação no âmbito familiar e na escola é fundamental para garantir a preservação da cultura democrática. Em 8 de janeiro de 2023, milhões de crianças e adolescentes brasileiros observaram os ataques à democracia e às instituições que a sustentam. A observação e a participação na vida política do Brasil fazem parte da trajetória desse público, abarcando momentos históricos de todos os espectros ideológicos. Em manifestações e passeatas partidárias, atos em defesa da democracia ou eventos antidemocráticos, crianças e adolescentes estão assistindo e direta ou indiretamente participando. O direito à essa participação e os limites dentro dos quais ela pode ocorrer são desenhados pelo arcabouço jurídico-normativo que garante os direitos de crianças e adolescentes no Brasil e que precisam ser observados dentro das regras do jogo democrático.
Após anos sob a vigência da “doutrina da proteção irregular” e menorista, segundo a qual crianças e adolescentes em situação de pobreza e vítimas de violência ou que cometessem algum ilícito eram considerados como “menores em situação irregular”, foi inaugurada, em 1988, a doutrina da proteção integral, com base na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, bem como a regra da prioridade absoluta dos direitos desse público, inscrita no artigo 227 da Constituição Federal. Naquele ano, crianças e adolescentes, junto de movimentos sociais, ocuparam o Congresso Nacional para garantir que suas vidas passassem a ser pautadas por uma nova lógica: a de sujeitos de direitos.
Desde então, outras conquistas foram garantidas para esse grupo nos três poderes federativos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, cerca de dois anos após a promulgação da Constituição, foi construído e aprovado, inclusive, com a participação de crianças e adolescentes, assim como outras importantes legislações que garantem direitos dessa parcela da população, como a Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e o Marco Legal da Primeira Infância.
Esse conjunto de normas estabelece que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e, portanto, devem ter direito a ter voz e participação ativa nos assuntos que lhes dizem respeito e nas mais diversas esferas políticas do país. Reconhecer a doutrina da proteção integral não é somente enunciá-la, mas compreendê-la como um pilar da democracia e criar mecanismos para implementá-la. Reconhecê-los enquanto sujeitos de direitos é compreender que devem participar desses diálogos como forma de preservar a própria democracia. Significa também assegurar outros deveres constitucionais, como o direito à educação, que estabelece que esta deve ser voltada para o exercício da cidadania.
Iniciar a educação para a cidadania desde a infância e promover a participação política dentro do escopo democrático é uma tarefa firmada em 1988, mas cuja implementação ainda é precária. Por isso, mais do que nunca, as famílias, sociedade e Estado, como prevê o artigo 227 da Constituição Federal, devem construir e fortalecer espaços de participação, bem como uma educação pautada, sobretudo, pelos valores democráticos em que o exercício da cidadania e o diálogo como ferramenta de resolução de conflitos sejam encorajados dentro e fora das escolas. Além disso, os deveres e a responsabilidade compartilhada, enquanto cidadãos, de participarem e protegerem a democracia e a necessidade do reconhecimento das instituições e das regras do Estado democrático de Direito como pilares da nossa democracia devem ser priorizados, sempre considerando que podem ocorrer reivindicações de direitos e discordâncias políticas, desde que pautadas na legalidade.
Os instrumentos de participação são múltiplos — como o direito ao voto de adolescentes com mais de 16 anos, a participação em conselhos de direitos, além de instituições representativas, como grêmios e entidades estudantis — e devem ser preservados e fortalecidos. Inclusive, crianças e adolescentes já demonstraram, em outras oportunidades, que quando ocupam espaços públicos, toda a potência de sua participação e engajamento nas discussões políticas e sociais demonstram ganhos para a democracia e garantem a concretização real dos princípios democrático-constitucionais.
Em entrevista ao especial do Instituto Alana de 30 anos do ECA, um dos adolescentes que participou de manifestações pelos direitos das crianças em 1990 conta detalhes sobre o momento da aprovação da lei: “quando perguntaram ‘quem está aqui que aprova o Estatuto da Criança e do Adolescente’, todos os meninos que estavam na parte de baixo e na galeria [Câmara dos Deputados] levantaram as mãos. Esse momento é conhecido na história como a maior pressão popular feita pelos próprios meninos para aprovar o ECA. Por isso é tido como uma lei que foi construída de forma popular por muitas mãos, inclusive das próprias crianças e adolescentes.”
Outro adolescente que contribuiu para uma pesquisa da pedagoga Franciele David sobre o movimento das ocupações escolares por estudantes secundaristas em 2016, destacou: “A gente foi realmente protagonista de nossas escolhas, e a gente não ficou quieto, a gente teve essa resistência e foi bem gratificante, porque a gente via que às vezes a juventude não tem voz, então a gente deu voz à juventude.”
Esses são exemplos que evidenciam que a participação de crianças e adolescentes dentro das regras democráticas podem impulsionar mudanças e promover transformações que somam conquistas para o campo de direitos fundamentais de crianças e adolescentes. O próprio direito à liberdade compreende a participação política e comunitária, e deve ser garantido com absoluta prioridade para que crianças e adolescentes exerçam sua cidadania plena como sujeitos de direitos.
O fomento ao direito à participação desde a infância, no âmbito familiar, na escola, nos espaços formais de participação política e nos demais espaços sociais, é fundamental para garantir a preservação da cultura democrática, contribuindo para que novos eventos, como aqueles observados em 8 de janeiro, não aconteçam. E, caso ocorram, possamos contar com cidadãos de todas as idades dispostos e preparados para condená-los e defender a democracia e suas instituições.
Fonte Jota