Quem manda no metaverso?

Algumas reflexões sobre o poder de construir e controlar o ambiente virtual. O metaverso não deixa de ser uma continuidade da internet e das várias interações que já ocorrem lá, como as redes sociais e os games. Nesse sentido, o metaverso antecede à tão anunciada iniciativa da Meta, pois está presente em propostas anteriores — como o Second Life — e em vários games e ambientes virtuais existentes há mais tempo, nos quais as pessoas, por meio dos seus avatares, conseguem usufruir a experiência de imersão total no ambiente virtual.

Assim, é importante salientar que, sob várias perspectivas, o chamado “metaverso da Meta” é um metaverso entre vários outros e não necessariamente será o único ou o principal ambiente virtual para o qual convergirão todas as nossas interações virtuais ou pelo menos parte significativa delas. Aliás, para Amy Webb, famosa futurista norte-americana, há outros metaversos mais promissores do que o da Meta, como é o caso do Roblox[1].

Para entendermos o metaverso ou os metaversos, é preciso contextualizar o assunto dentro da própria evolução da internet, que poderia ser descrita sucintamente da seguinte maneira:

na Web 1.0, a internet corresponde a uma grande livraria, editora e arquivo, dominada pelos donos dos conteúdos que digitam e organizam esses conteúdos e por usuários que os pesquisam e acessam.
na Web 2.0, a internet torna-se um grande espaço de interação virtual, já que os usuários começam a produzir seus conteúdos e a interagir mais diretamente com outros usuários, como nas redes sociais, e também com empresas, dando ensejo à figura do “prosumidor”, neologismo que decorre da fusão entre produtor e consumidor; da mesma maneira, agentes econômicos e governamentais passam a interagir entre si e também com os cidadãos.
na Web 3.0, há a crescente fusão ou interpenetração entre o mundo real e o mundo virtual, a fim de reproduzir no segundo todas as interações do primeiro e ainda ampliá-las, de modo a também viabilizar experiências que não seriam possíveis no mundo real.

Daí a maior intensidade, a maior abrangência e o caráter realmente inovador da web 3.0:

Intensidade → com os óculos, as roupas e os recursos próprios — que reproduzem as sensações do mundo real, especialmente no que diz respeito à visão e ao tato — erodem-se as barreiras entre o real e o virtual, já que o usuário experimenta o mundo virtual como se realidade fosse.
Abrangência → as interações no metaverso podem abarcar praticamente todas — senão todas — as interações já existentes no mundo real, desde trabalho e educação a entretenimento e relações pessoais.
Inovação → o metaverso admite interações que só são possíveis no mundo virtual, na medida em que pode neutralizar fronteiras espaciais e temporais, assim como desconhecer ou mesmo superar diversas limitações do mundo real, como a lei da gravidade, por exemplo.
Daí a ideia de que o metaverso pode ir além da realidade e mesmo suplantá-la, o que fica claro na sua própria nomenclatura, que indica algo além do universo. Luciana Allan[2] oferece um interessante exemplo disso na questão da educação:

“Imagine aprender história e ir parar virtualmente na Grécia do século XVIII a.C, enxergando tudo sob o seu próprio ângulo de visão? Ou ainda presenciar um fenômeno da natureza in loco por meio de uma simulação em 3D?

No metaverso a máxima é ‘seja tudo o que você puder ser no mundo real. Seja tudo o que você puder imaginar no mundo virtual’”.

Entretanto, se as possibilidades e perspectivas do metaverso são amplas e promissoras, ainda pouco se sabe sobre como esses espaços de interação serão conformados e desenvolvidos mesmo em um futuro próximo. Daí os inúmeros questionamentos a seu respeito: o que é o metaverso? Realidade, utopia ou distopia? Processo de imersão total ou parcial? Fusão com o mundo real ou conexão? Espaço de realidade virtual, de realidade aumentada ou de ambos? Espaço de interações verdadeiras e fidedignas ao mundo real, intermediadas por avatares que representam nossas próprias identidades, ou de interações artificiais e desconectadas da realidade física, em que cada usuário pode ter uma ou mais personalidades artificiais?

Como se trata de um espaço em construção, não é possível responder a tais perguntas no presente momento, embora haja boas razões para acreditar que o metaverso pode ser o futuro não apenas das redes sociais e dos games, mas também de uma considerável parte das interações humanas e sociais.

O simples fato de que um cenário possível é o de que todos nós, em alguma medida, tenhamos que migrar, mais cedo ou mais tarde, para tais ambientes, ainda que para interações específicas ou por questões profissionais e educacionais, é suficiente, entretanto, para pensarmos com mais cuidado em vários dos aspectos de sua arquitetura e controle.

Daí a importância de se indagar sobre como essa arquitetura é construída e por quem. Não é sem razão que, para Lawrence Lessig[3], a pergunta mais importante a ser feita no atual momento é: quem manda no metaverso? Quem criará a arquitetura e as regras? Qual é o modelo de negócios?

No caso do metaverso da Meta, Lessig mostra que são muitas as preocupações decorrentes do fato de que a arquitetura e as regras desse novo espaço sejam definidas por apenas um agente — no caso, a Meta — e com base apenas nos seus interesses econômicos, sem maiores preocupações com os direitos dos usuários e com o endereçamento de vários problemas do mundo real que podem também ser replicados e até potencializados no mundo virtual, como a questão da desigualdade e da exclusão.

A partir do caso Facebook Papers, Lessig[4] mostra que as perspectivas do metaverso da Meta podem ser bastante complicadas, diante de plataforma cujo modelo de negócios gera graves externalidades sociais — entre as quais os obstáculos criados para que os indivíduos possam governar a si próprios e a própria subsistência das instituições democráticas — que são sistematicamente negligenciadas por uma gestão que prioriza somente os lucros.

Trazer Lessig para o debate a respeito do metaverso é bastante interessante, pois o autor já é conhecido por mostrar a importância da tecnologia como vetor de regulação, o que se traduz na conclusão de que “code is law”[5]. Nesse sentido, a teoria de Lessig ressalta que, ao lado do direito e da regulação estatal, há outros vetores regulatórios — como as normas sociais, as normas do mercado e também a tecnologia — e que a tecnologia, como vetor de regulação, não é neutra, mas sim fruto de escolhas que privilegiam determinados valores que não necessariamente serão convergentes com os valores previstos pelo direito.

Daí o receio legítimo de que o modelo de negócios do metaverso desconsidere a regulação jurídica, os direitos dos usuários e as instituições democráticas, o que faz com que o próprio Lessig[6] ressignifique o problema: “If the first slogan was ‘code is law,’ I think we need to see that business models eat law. Business models eat law”.

De fato, o metaverso possibilita que a plataforma exerça controle não somente pela arquitetura/tecnologia, mas também por todos os outros vetores, inclusive criando um direito próprio, por meio de regras institucionalizadas — traduzidas em políticas de uso unilateralmente impostas aos usuários, que ainda são modificadas de forma reiterada e igualmente unilateral — que podem neutralizar as regras jurídicas do mundo real.

Ainda há que se considerar que o metaverso potencializa os problemas regulatórios já criados pela internet, especialmente no que diz respeito à desconsideração das noções de soberania dos países quanto à aplicação de suas legislações e jurisdições.

Se há muito tempo que se afirma que as plataformas são net states, o que desperta preocupações sobre a necessidade até mesmo de um constitucionalismo digital, imagine-se agora com a questão do metaverso. Dentre as inúmeras indagações e perplexidades decorrentes do assunto, destaca-se o recente questionamento que Carissa Veliz[7] fez em seu Twitter:

“Here’s a question about the Metaverse that I haven’t heard an answer for: what’s the plan for making sure that people can completely opt out of it, so that a dystopic virtual reality doesn’t get imposed on unconsenting citizens?”

Todas essas questões mostram que, antes de posturas excessivamente otimistas ou pessimistas a respeito do metaverso, precisamos pensar em quem o controla, como o controla e para que fins o controla. Não há dúvidas de que essa reflexão pode ser muito mais útil no presente momento, em que a construção está no início, do que quando já for tarde demais.

[1] Na reportagem do Valor Econômico “O que será o amanhã, segundo Amy Webb”, veiculada em 07.04.2022, há a seguinte informação: “O metaverso dará certo? Sim, responde, mas a abordagem a observar não é a da Meta, a dona do Facebook. Melhor prestar atenção ao Roblox.” Prossegue depois a reportagem: “A citação ao Roblox não é incidental. A empresa controla uma plataforma na qual os usuários tanto podem disputar games feitos por outros usuários como criar e oferecer seus próprios jogos. ‘Acho que é o melhor exemplo do que uma abordagem de plataforma pode ser no metaverso’, afirma Amy. (…) Ela não é uma entusiasta da visão da gigante das redes sociais. ‘O metaverso do Facebook me lembra um pouco mais o Second Life. É fechado. Não é realmente uma plataforma’”.

[2] Metaverso na educação: o virtual em contraste com o real. https://pt.linkedin.com/pulse/metaverso-na-educa%C3%A7%C3%A3o-o-virtual-em-contraste-com-real-luciana-allan-1e?trk=pulse-article_more-articles_related-content-card

[3] Intervenções proferidas no evento 2022 FutureLaw: Computational Law and the Metaverse. Stanford Law School. https://www.youtube.com/watch?v=KTPUzmEkIMI

[4] Idem.

[5] LESSIG, Lawrence. Code and others laws of cyberspace, Basic Books, 2009.

[6] Idem.

Fonte: JOTA

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