Sanção da LC 190/22 motiva apressada polêmica sobre regras de anualidade e de anterioridade nonagesimal
O ano fiscal se iniciou com um impasse. O Projeto de Lei Complementar 32/2021, que poria fim a anos de controvérsia jurídica acerca da cobrança do diferencial de alíquota (Difal) nas operações interestaduais que destinam mercadorias a consumidores finais não contribuintes, somente foi sancionado em 4 de janeiro deste ano, fazendo surgir apressada polêmica de que seria, agora, necessário observar as regras de anualidade e de anterioridade nonagesimal. A tese invoca as alíneas “a” e “b” do inciso III do art. 150 da CF/88, e a regra de vigência prevista no art. 3° da Lei Complementar 190/2022.
Há muito barulho em torno da sanção “tardia” da LC 190/2022. Tributaristas se apressam a vender suas teses, estados lamentam as possíveis perdas, o presidente da República passeia de jet ski, e o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da ADI nº 5469 e do RE nº 1.287.019 ainda pendem de publicação de acórdãos em embargos de declaração.
Apesar do barulho, é mesmo curioso que contribuintes sejam considerados legitimados a discutir um assunto que tem caráter estritamente interna corporis dos sujeitos ativos.
Desde a origem, o diferencial de alíquota nunca foi critério de materialidade de ICMS. O conteúdo do inciso VII do §2° do art. 155 da Constituição Federal sempre foi uma regra de repartição de receitas. Não institui tributo, não estabelece carga tributária. Trata-se de regra que materializa o objetivo federativo de diminuição das desigualdades regionais.
As regras que estabelecem critérios de repartição da carga tributária entre os estados e o Distrito Federal, em si, não possuem nenhum status de garantia constitucional dos contribuintes. Invocá-las, em favor desses, é, a um só tempo, despropositado e inútil. Despropositado porque ausente o pressuposto de pertinência temática com sua esfera de interesses. E inútil porque deixar de recolher o diferencial não autoriza, necessariamente, a conclusão de haver redução de carga tributária, como se explicará.
A LC 190/2022 não regulamenta garantias constitucionais, tampouco institui ou majora tributo — sendo essa atribuição exclusiva dos entes da Federação. É completamente sem sentido cogitar que a sua vigência deva observância a uma limitação constitucional ao poder de tributar. A disciplina, em lei complementar, sobre critérios internos de equilíbrio fiscal, não se sujeita, portanto, a anterioridades. A regra de divisão da receita em operações interestaduais é nitidamente de caráter financeiro. Ademais, a referida lei apenas veicula normas gerais (art. 146, III, da CF). Não há preenchimento do suporte fático do art. 150, III, “b” e “c”.
Por outro lado, cabe indagar o que ganhariam os contribuintes com a erosão do Difal.
Numa primeira hipótese, a decisão do STF teria autorizado a conclusão (não expressa, diga-se de passagem) de que é possível pagar alíquota interestadual sem pagar o correspondente diferencial de alíquota.
Nesse cenário, é evidente haver quebra grave de concorrência entre as empresas de e-commerce e as empresas com estabelecimento físico: deslealdade comercial entre as operações internas e as operações interestaduais. E, neste caso, milhares de contribuintes varejistas e atacadistas, sobretudo em estados consumidores, deveriam estar tão preocupados quanto os gestores dos Tesouros estaduais. Seus negócios não terão chances competitivas diante de gigantes do e-commerce que, além do uso de algoritmos e da superioridade logística e mercadológica, agora possuem — nessa linha de raciocínio — a imbatível vantagem competitiva de pagar bem menos tributos. Nem só de antitruste vive o direito concorrencial. Garantir distribuição justa da carga tributária é tão fundamental à livre concorrência quanto evitar aquisições abusivas. Há risco grave à economia, ao livre mercado e às finanças públicas.
Em uma outra hipótese, é preciso imaginar que toda a regra de partição de receita interestadual está suspensa. Se o Difal não pode ser exigido pelo estado de destino, parece correto assumir que o estado de origem poderá se sentir legitimado a exigir o pagamento da alíquota interna (cheia), uma vez que foi apenas suspenso o critério de repartição de receita, sem impacto de carga tributária.
Neste cenário, caberá “ao vencedor as batatas”[1]. Contribuintes não terão qualquer redução de carga tributária, estados de destino terão suas finanças irremediavelmente comprometidas e o Judiciário sofrerá novamente com avalanche de lides. O mito de Sísifo parece sempre a perfeita metáfora das controvérsias envolvendo tributos[2]. Há, portanto, risco ao pacto federativo, à administração da Justiça, às finanças públicas.
Há duas alternativas, entretanto, para evitar todo o barulho nesse jogo de soma zero. Ambas passam pela Suprema Corte e demandam oposição de embargos de declaração.
A primeira delas é a definição da interpretação correta dos julgados. Não houve declaração de inconstitucionalidade, e não há solução de continuidade na cobrança do Difal – mesmo porque não se trata de novidade, não há surpresa.
O STF afirmou, na esteira da orientação já prevalente na Corte quando do julgamento do Tema nº 1.094, “que as leis estaduais ou do Distrito Federal editadas após a EC 87/15 que preveem o ICMS correspondente ao Difal são válidas, mas não produzem efeitos enquanto não for editada lei complementar dispondo sobre o assunto”.
Assim, não houve reconhecimento de inconstitucionalidade, formal ou material, das legislações estaduais e distrital anteriores à lei complementar federal. O STF apenas disse que, antes da edição de lei complementar, elas seriam ineficazes, e ainda assim modulou essa decisão de ineficácia para 2022.
As leis estaduais anteriores à lei complementar federal, mas posteriores à Emenda Constitucional (EC) 87/2015, eram e continuam sendo constitucionais: apenas necessitavam de lei complementar como (mais uma) condição de eficácia. Alguns advogados não têm se atentado a isso e dizem expressamente serem elas inconstitucionais, ou constroem raciocínios como se elas o fossem. Ocorre que o STF afastou a inconstitucionalidade, deixando claro que teriam sua eficácia restabelecida tão logo fosse editada a lei complementar.
Diga-se, ainda, que a redação final do art. 3° da LC 190/2022 — resultante de uma alteração de última hora no projeto que tramitava no Congresso — refere-se apenas ao óbvio: estados que ainda não tinham disciplinado o diferencial de alíquota ou que majorem a carga precisam observar a anterioridade nonagesimal. O referido artigo não cogita de anualidade, tendo em vista que a remissão é exclusiva à alínea “c” do inciso III do art. 150 da Constituição. É incabível a interpretação de “remissão da remissão” para atrair a anualidade prevista na alínea “b” do inciso III do art. 150 da Constituição, não expressamente mencionado, seja porque se trata de interpretação não condizente com critérios hermenêuticos básicos (silêncio eloquente), seja em razão da regra do art. 11, II, “g”, da Lei Complementar n° 95/1998, a qual dispõe sobre técnica legislativa.
Não há qualquer margem, na Constituição ou na decisão do STF, para que a lei complementar decida quando os estados podem tributar. Entender de maneira diversa implica aceitar a inconstitucionalidade do art. 3° e da LC 190/2022. As limitações ao poder de tributar decorrem da Constituição e não de lei.
Admitir que a lei complementar pudesse estabelecer novos limites e definir o momento da tributação afrontaria a competência tributária estadual (art. 155, II), violaria o princípio federativo (arts. 1º e 18), implicaria descumprimento transverso da vedação de isenções heterônomas (art. 151, III) e ofenderia a disposição literal da própria EC 87/2015, a qual já estabelece (art. 3º) regra própria de vigência. Não se deve interpretar a anterioridade conforme lei alguma: as leis é que precisam ser interpretadas consoante à Constituição, inclusive com as hipóteses específicas de anterioridade (art. 150, III).
Uma segunda solução diz respeito aos termos da modulação dos efeitos da decisão dada no julgamento conjunto da ADI nº 5469 e do RE nº 1.287.019. É preciso esclarecer que a condição e o prazo estabelecidos na regra de modulação foram todos observados. O STF fixou o prazo de até 31 de dezembro de 2021 como limite para o Congresso Nacional editar a lei complementar federal então inexistente. O Congresso, pelas suas duas Casas, exerceu o seu mister no tempo assinalado. Os prazos de sanção presidencial ou publicação não foram considerados na modulação fixada pelo STF. Como o prazo dado foi cumprido pelo seu expresso destinatário, no texto e no espírito, não há de se falar em qualquer vácuo normativo de cobrança.
Mas não é só. Há fato novo. Uma sanção presidencial que não veio em 2021, por insondáveis motivos, seria justificativa mais do que suficiente para que se repactuassem os termos da modulação anterior. Os pressupostos da Lei 9.868/99 estão perfeitamente configurados: risco de lesão à economia e ao livre mercado, à administração da Justiça, às finanças públicas, quebra irreparável do pacto federativo e violação à cláusula pétrea de diminuição das desigualdades regionais.
Sendo trazidas as “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social que autorizam a modulação” e verificado que o prazo originariamente concedido pela Corte foi insuficiente, embora quase suficiente, nada impede que o STF amplie o prazo originário. O Direito brasileiro tutela a regra de que ninguém é obrigado ao impossível (arts. 104 e 248 do CC), assim como protege a regra de o fato superveniente dever ser considerado pelo aplicador da norma (art. 493 do CPC). O pedido e a concessão de prorrogação da modulação nada têm de inéditos, e já foram deferidos pelo STF, ilustrativamente, no âmbito da ADI nº 4876 e do RE nº 600.885.
Não há tarefa mais própria a uma Suprema Corte do que reduzir o ruído das lides, dos atritos federativos e da ressonância de teses que, afinal, não contribuem, nem minimamente, para a justiça fiscal. Cabe ao STF assumir o protagonismo que o caso reclama e que a sua competência constitucional autoriza, esclarecendo o alcance da decisão dada, para reafirmar a eficácia imediata das leis sobre o Difal, ou para alongar a modulação originariamente concedida.
[1] Frase célebre do livro Quincas Borba, Machado de Assis.
[2] Filho do vento, Sísifo é condenado a rolar uma pedra ao alto de uma montanha, apenas para vê-la descer e ter de fazê-la rolar morro acima, novamente, todos os dias, para toda a eternidade.
Fonte: JOTA