PEC 29/2020 transforma o combate à miséria em política de Estado e não de governo. Pedro (nome fictício), pessoa com deficiência, vive em situação de rua em Porto Alegre. Sem casa, sem emprego e em extrema vulnerabilidade econômica, não consegue ter o mínimo para assegurar a própria sobrevivência. Sua renda vem dos R$ 91 que recebe do programa Bolsa Família, mas o preço médio da cesta básica em sua cidade, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), é de R$ 626. Buscando algum amparo, Pedro foi atendido pela Defensoria Pública da União (DPU) e seu caso chegou até o Supremo Tribunal Federal (STF).
No Supremo, a DPU conseguiu uma decisão que ajuda Pedro e milhões de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza no Brasil. Com base na Lei 10.835/2004, a Lei da Renda Básica, ficou determinado que o governo implemente, já em 2022, uma renda básica à população mais vulnerabilizada do país.
No Brasil, mesmo antes da pandemia da Covid-19, ao menos 9,3 milhões de pessoas estavam em situação de extrema pobreza – vivendo com menos de R$ 150 por mês —, segundo dados de 2018 do Banco Mundial. A Lei da Renda Básica, porém, estabelece que o governo pagará um benefício suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, em uma escala de prioridade que se inicia com as pessoas mais empobrecidas.
A lei, no entanto, nunca saiu do papel. As dificuldades econômicas do país, com déficits fiscais recorrentes, e a limitação do teto de gastos têm sido apresentadas como justificativa para o descumprimento da legislação. Mas a principal razão talvez seja a ausência de indignação diante da situação precária de vida de milhões de brasileiros, agravada pela pandemia. As autoridades precisam reconhecer que o combate à fome e à pobreza por meio de políticas assistenciais não é só um dever humanitário, mas também jurídico, exposto na Constituição Federal, nos tratados internacionais com os quais o Brasil se comprometeu e nas leis do país.
Por muito tempo, a principal ferramenta de combate à fome e à miséria no país foi o Bolsa Família, programa que foi recentemente extinto para dar lugar ao Auxílio Brasil. O desenho do novo benefício ainda não está completo – aprovada pelo Senado com alterações no texto original, a PEC dos Precatórios, que viabiliza o programa, voltou à Câmara. Todavia, para ter resultados positivos, é preciso que algumas bases sejam firmemente estabelecidas.
Para começar, o programa precisa ter a continuidade garantida ao longo tempo, tornando-se uma medida de Estado e não de governo. Além disso, os critérios para definir quem tem direito ao benefício precisam ser constantemente atualizados, de preferência pela inflação. No momento, a Câmara definiu que estão em situação de extrema pobreza aqueles que vivem com menos de R$ 105,01 por mês e, em situação de pobreza quem ganha menos de R$ 210.
Ainda que representem uma evolução, esses critérios estão defasados e não acompanham os parâmetros de pesquisadores brasileiros nem de organismos internacionais. O valor também precisa ser de acordo com as suas finalidades: uma cesta básica custa, em média, R$ 600. Incrementos tímidos podem não ser suficientes para se alcançar os objetivos do programa.
Para subsidiar o debate, a Defensoria Pública da União criou o Comitê DPU Renda Básica Cidadã, responsável por produzir estudos, audiências públicas e organizar reuniões com órgãos públicos e a sociedade civil. O grupo elaborou uma nota técnica em que avalia os principais aspectos envolvidos e propôs caminhos para que a Lei 10.835/2004 seja implementada. A mais importante conclusão é a de que é possível ao Brasil pagar pelo menos R$ 480 a 44 milhões de pessoas em situação de pobreza ou extrema pobreza.
Neste contexto, o Senado aprovou no último dia 9 de novembro a PEC 29/2020, que coloca na Constituição o direito a uma renda básica às pessoas necessitadas. Essa medida transforma definitivamente a assistência e o combate à miséria em política de Estado e não de governo.
A PEC segue agora para a Câmara e uma aprovação poderia impedir que se vivencie insegurança e imprevisibilidade sobre o programa assistencial brasileiro. Outras discussões no Parlamento estão em curso e envolvem o tema, direta ou indiretamente. A miséria não pode ser desconsiderada no debate da reforma tributária, por exemplo, e a lei orçamentária de 2022 também não está aprovada ainda.
A experiência do auxílio emergencial mostrou o potencial transformador que uma política robusta de transferência de renda pode ter no desenvolvimento social e econômico do país. É chegado o momento de se repensar as prioridades. Hoje, o Brasil tenta encaixar o combate à fome dentro do orçamento, mas talvez seja hora de fazer o contrário: adaptar o orçamento à busca pela erradicação da pobreza.
Fonte: JOTA