André Mendonça durante sabatina na CCJ do Senado. Crédito: Edilson Rodrigues/Agência Senado. Na último dia 1º de dezembro, a indicação de André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal (STF) foi aprovada pelo plenário do Senado, com 47 votos a favor e 32 contrários. Na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde foi realizada a sabatina de André Mendonça, o indicado obteve 18 votos a favor e 9 contrários.
Foram 105 dias de espera (a Mensagem nº 36/2021 tinha chegado à CCJ no dia 18 de agosto). E o desfecho do episódio traz importantes lições, além das já comentadas em coluna passada.
Ao negar seguimento ao MS nº 38.216, de forma correta, o ministro Ricardo Lewandowski se absteve de exercer qualquer tipo de controle, deixando para a própria Casa Legislativa a solução do impasse (quanto à marcação da data da sabatina) paras as vias políticas.
A referida decisão evitou emitir juízo de valor quanto ao comportamento in concreto do presidente da CCJ, se legítimo ou ilegítimo. No entanto, embora isso não tenha sido afirmado com todas as letras no MS nº 38.216, não há inconstitucionalidade no comportamento parlamentar obstrutivo à aprovação do nome indicado pelo presidente da República.
Ou seja, o silêncio eloquente também é uma resposta possível do Senado Federal. Não é inconstitucional deixar de votar a indicação. Isso nunca ocorreu antes na experiência brasileira em relação a um indicado para o cargo de ministro do STF, mas não haveria problema em que acontecesse desta vez ou em qualquer momento futuro.
Observe-se, inclusive, que é relativamente comum que o Senado deixe de avançar com diversas indicações de nomes para cargos em que a lei determina a arguição pública (artigo 52, inciso III, alínea f, da Constituição Federal, sobretudo diretores de agências reguladoras). E mais: por vezes a sabatina é realizada, mas o nome fica meses aguardando a inclusão na Ordem do Dia para votação em plenário.
Inclusive, no ano de 2020, em razão da pandemia da Covid-19, essa competência senatorial passou seis meses em “hibernação”, como apontado aqui. Ou seja, eventuais demoras são da praxe da atuação parlamentar na escolha de autoridades.
Agora, a legitimidade dessa suposta atuação obstrutiva adviria de ser uma decisão coletiva, não isolada. Essa é a ratio dos mecanismos de obstrução: uma ação coordenada, ainda que por um grupo minoritário, mas que contenha algum nível de apoio entre outros senadores e/ou partidos políticos. O espaço para a atuação individual não vai muito além do uso da palavra e alguns requerimentos previstos no Regimento Interno do Senado Federal, mesmo para os presidentes dos colegiados.
Ainda sob esse aspecto, é importante enfatizar que a decisão do STF não implicou o reconhecimento judicial da possibilidade jurídica de obstrução de um só parlamentar à revelia de seus pares no caso. Como dito, a decisão não entrou nesse mérito. Assim, o juízo quanto ao assunto (isto é, quais são os limites da obstrução parlamentar individual) deve partir da própria Casa Legislativa.
A correta compreensão do referido pronunciamento judicial não poderia conduzir à conclusão de que o presidente da CCJ teria poderes de veto ou obstrução absolutos, tampouco à consideração de que a discussão estaria encerrada dentro do Senado, como se inexistissem mecanismos regimentais alternativos com vistas a superar uma eventual obstrução que passasse a ser considerada ilegítima entre a maioria parlamentar (ou seja, na hipótese de se formar um juízo no sentido de que essa não seria a vontade política da Casa Legislativa).
Dito com outras palavras, a decisão do STF não foi um cheque em branco para o presidente da CCJ atuar como bem entendesse, pessoalmente, de forma isolada, com independência da vontade parlamentar coletiva. Os presidentes das comissões e das Casas Legislativas apenas espelham seus pares, não lhes sendo dado atuar de forma isolada ou autocrática.
Ao que tudo indica, ao menos por algum tempo, a atuação do presidente da CCJ (em negar pautar o tema) reverberou a vontade política da maioria da Senado Federal. No entanto, as circunstâncias da política podem mudar rapidamente, e a obstrução há pouco tolerada (e mesmo considerada legítima) pode passar a ser entendida como um abuso das prerrogativas institucionais, se a maioria parlamentar resolver trocar de posição por quaisquer razões. É o que parece ter acontecido no caso da sabatina do ex-ministro André Mendonça.
No caso concreto, a questão foi resolvida politicamente: o presidente da CCJ acabou marcando a sabatina.
Mas, caso o presidente da CCJ tivesse insistido na recusa em fazê-lo, entender que não existiriam mecanismos regimentais para contornar uma circunstância dessa natureza equivaleria a atribuir a um único parlamentar poderes de veto e de obstrução absolutos, maiores do que os do próprio presidente da Casa Legislativa e demais lideranças parlamentares, o que, além de absurdo do ponto de vista jurídico e político, fugiria ao espírito do Regimento Interno do Senado e do direito parlamentar brasileiro.
Embora os mecanismos regimentais alternativos não tenham sido utilizados no caso do ex-ministro André Mendonça, caberia listar, em abstrato, o que poderia ter sido feito à luz do Regimento Interno para superar a hipótese em que o silêncio eloquente do presidente da CCJ contrariasse a posição institucional da Casa Legislativa.
Em primeiro lugar, seria possível a substituição do presidente da comissão (artigos 80 e 81 do Regimento Interno do Senado), na medida em que não há mandato e o assento pertence ao partido ou bloco parlamentar, cujo líder indica os nomes ao presidente da Casa Legislativa. Então, esse instrumento de controle da atuação do presidente da CCJ caberia ao partido ou bloco parlamentar respectivo.
Em segundo lugar, os legitimados poderiam apresentar uma representação por suposta quebra de decoro parlamentar em face do presidente da CCJ, em razão de sua conduta ser entendida em abstrato como possível abuso de prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional (artigo 55, §1º, da CF).
Nesse caso, registre-se que a Resolução nº 20/1993, do Senado Federal, que institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar, faculta o afastamento cautelar do representado do cargo que eventualmente exerça, desde que exista indício da alegação de prática de ato incompatível com o decoro parlamentar ou fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação à imagem do Senado Federal (artigo 15-A, §2º).
Em terceiro lugar, o presidente do Senado poderia proceder à convocação do presidente da CCJ para dar explicações, com fundamento no artigo 48, inciso XXII, do RISF.
Em quarto lugar, na eventualidade de ser marcada reunião da comissão, seria possível a utilização da faculdade do artigo 108 do Regimento Interno, para iniciar a reunião com a presença de, no mínimo, um quinto dos membros, ainda que sem o presidente da CCJ.
Em quinto lugar, e talvez o mecanismo mais drástico de todos, seria possível o requerimento para a adoção do regime de urgência, conforme os arts. 336 e seguintes do RISF, permitindo que a matéria fosse afetada para apreciação direta pelo Plenário. Embora juridicamente possível, como se passa a explicar a seguir, definitivamente não seria o desejável em termos de desenho institucional.
É bem verdade que a Constituição, artigo 52, inciso III, não definiu quem, dentro do Senado Federal, deteria a atribuição para proceder às sabatinas das autoridades indicadas. Por seu turno, a Constituição, artigo 58, §2º, tampouco colocou as arguições públicas de autoridades como uma competência “privativa” das comissões.
No entanto, como se depreende do próprio artigo 58, caput, da CF, que expressamente delegou ao regimento interno a definição das competências das comissões, as atribuições dos referidos colegiados fracionários são uma matéria tipicamente regimental.
Do texto constitucional não é possível extrair qualquer comando mais específico voltado para o Senado, seja quanto ao procedimento detalhado para a escolha de autoridades, seja quanto à competência para a realização das sabatinas. Nesse assunto, portanto, vigoram unicamente as disposições do Regimento Interno, que não apresentam qualquer mácula à luz da Constituição.
De acordo com o Regimento, artigo 383, que fixa o procedimento para a escolha de autoridades, as arguições públicas são realizadas pelas comissões. No caso da arguição para o cargo de ministro do STF, de acordo com o artigo 101, inciso II, alínea i, a comissão competente é a CCJ, que teria o prazo de 20 dias úteis para analisar a matéria, segundo o artigo 118, inciso II do Regimento.
Muito embora o texto constitucional ou o Regimento Interno do Senado não tenham estabelecido (desde um ponto de vista jurídico) que as sabatinas são uma atribuição “exclusiva” das comissões, pode-se afirmar (desde um ponto de vista político e à luz das práticas legislativas continuadas) que assim tem sido, o que daria preferência a esses colegiados para a realização da sabatina.
Trata-se de um costume parlamentar com status constitucional. Não há notícias de arguições públicas de autoridades realizadas diretamente pelo plenário do Senado no passado.
Como parâmetro de comparação, na Câmara dos Deputados existe previsão regimental de que o plenário pode ser sede de audiências públicas e comissões gerais para debater matéria relevante, por proposta conjunta dos líderes ou a requerimento de um terço dos deputados, discutir projeto de lei de iniciativa popular ou receber ministro de Estado (Regimento Interno da Câmara dos Deputados, artigo 91).
No entanto, no Senado isso não se verifica. A eventual aprovação de uma providência nesse sentido geraria algumas perplexidades e dificuldades de ordem prática, que convém suscitar.
Em primeiro lugar, pela dinâmica do Regimento Interno, as inquirições são feitas pelos membros da respectiva comissão. A rigor, cada senador interpelante disporá de 10 minutos, assegurado igual prazo para resposta, imediata, do interpelado, facultadas réplica e tréplica, ambas também imediatas, por cinco minutos (artigo 383, inciso II, alínea f). Há um número menor de participantes.
É verdade que, em aplicação do artigo 112 do Regimento, qualquer senador pode participar dos trabalhos e debates de qualquer comissão de que não seja membro, sem direito a voto, e não haveria impedimentos a que os senadores que não são da CCJ façam perguntas (inclusive, é o que acontece em alguma medida). Apenas há regras de preferência para os membros da própria comissão. Seja como for, é indiscutível que a realização das arguições nas comissões oportuniza um debate mais especializado e de maior qualidade.
Na eventualidade de a sabatina ser realizada no plenário, pergunta-se: todos os senadores poderiam fazer perguntas? Em caso positivo, essa possibilidade não implicaria submeter o candidato a um constrangimento adicional em relação aos que lhe antecederam nessa etapa de arguição senatorial? Quais seriam os procedimentos de organização? Considerando a arquitetura do plenário, onde o candidato inquirido ia ficar: sentado na mesa que preside os trabalhos ou no parlatório? Tudo isso provocaria interferências na dinâmica prática da sabatina.
Em segundo lugar, as arguições nas comissões funcionam como um double check, somando-se à votação em plenário. Trata-se de um procedimento de escolha em duas etapas. Assim, na eventualidade de a matéria ser levada diretamente ao Plenário, estaria sendo feita uma modificação no desenho institucional do procedimento. É duvidoso que um eventual by-pass das comissões, afetando tal competência diretamente para o Plenário, seja uma providência neutra em termos de procedimento deliberativo.
No rito normal, o relator indicado na CCJ apresenta um “relatório” à comissão (artigo 383, inciso II, alínea a, do Regimento) e, após a arguição do indicado, o referido relatório é votado pelo colegiado (alínea g). Na sequência, a matéria segue para o Plenário, onde a votação se dá já sobre o nome do indicado. Por seu turno, na eventual hipótese de a arguição ser realizada diretamente no plenário, pergunta-se: seria designado relator para ler o “parecer” em plenário, antes ou depois da arguição pública?
Em terceiro lugar, por mais que o Regimento, artigo 406, retire a força obrigatória das questões de ordem (só a adquirem se incorporadas ao próprio Regimento), caso, pela primeira vez na história, a sabatina de autoridades seja realizada diretamente pelo plenário, esse simples fato gerará, sim, um “precedente” com vistas a casos futuros, e não só quanto aos indicados para o cargo de ministro do STF. O episódio tenderia a ser suscitado dentro de um lapso temporal cada vez mais reduzido, com risco de enfraquecimento e esvaziamento da atuação das comissões.
Em resumo, embora não haja exclusividade na Constituição Federal ou no Regimento Interno do Senado, do ponto de vista prático, existe, sim, uma preferência no sentido de que as sabatinas sejam realizadas no âmbito das comissões. No entanto, sem prejuízo das considerações acima, não haveria óbice constitucional ou regimental a uma decisão institucional em sentido diverso, já que o plenário é a instância decisória máxima das Casas Legislativas.
Como sabido, o próprio Regimento Interno, artigo 412, inciso III, prevê que o Plenário pode superar até mesmo as disposições regimentais. Então, a fortiori, também poderia tomar uma decisão quanto a esse caso.
Menos mal que não tenha sido necessário suscitar qualquer desses mecanismos regimentais para superar a recalcitrância na marcação da sabatina. Saber o que poderia ter acontecido representa um grande alívio. E a mais importante das lições do episódio que fica é essa: a inexistência, à luz do direito parlamentar brasileiro, de poderes de obstrução individuais absolutos, sob pena de se reconhecer a um único parlamentar poderes maiores do que os do próprio presidente da Casa Legislativa e demais lideranças parlamentares, o que fugiria ao espírito do Regimento Interno do Senado e da Constituição.
Fonte: JOTA