O pedido de recuperação judicial do Grupo 123 Milhas é um exemplo de como as sociedades empresariais podem deter um grande poder e nem sempre o Estado consegue atribuir os freios necessários para a adequada proteção de trabalhadores, consumidores e fornecedores que se relacionam com a empresa em crise.
Em breve resumo: o objetivo era democratizar o turismo, promovendo grandes campanhas publicitárias mediante oferta de passagens aéreas e pacotes de viagem a custos bastantes competitivos. Desde 2017 no mercado e com crescimento constante, após a pandemia da Covid-19 houve a coincidência de grande apetite dos consumidores por viagens. Porém, a empresa parece não ter mapeado corretamente os riscos inerentes ao modelo de seu negócio, na medida em que o “estoque” da 123 Milhas se baseava na compra de milhas de companhias aéreas de terceiros particulares pela empresa HotMilhas, para então emitir as passagens vendidas por outra empresa do Grupo 123 Milhas.
Com o custo das suas mercadorias bem maior do que o previsto, os valores dos produtos Promo – que consiste na compra de um direito de viagem para local definido em período de data pré-estabelecido – passaram a ser insuficientes para a emissão de passagens ou pacotes de viagens, ocasionando o inadimplemento da empresa no cumprimento de suas obrigações. A não entrega dos produtos, mesmo após interação dos clientes ou reclamações junto aos órgãos de defesa do consumidor, desencadeou uma avalanche de reclamações de clientes.
Torna-se, assim, importante refletir sobre livre iniciativa, liberdade econômica e a proteção do consumidor.
A atividade do empresário encontra guarida na Constituição Federal (artigo 170), resguardando a ele poder para exercer qualquer atividade econômica, desde que respeitados os direitos dos consumidores e do meio ambiente, por exemplo. Assim, o Estado procura se valer de vários agentes, públicos e privados, para juntos e em cooperação promover o desenvolvimento econômico e social do país, sustentável e organizado. Objetiva-se promover o interesse social por meio da geração de valor para todos os envolvidos na empresa e sociedade.
O Código Civil (artigo 966) define o empresário como aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, sendo inerente à atividade econômica a satisfação de necessidades alheias e a obtenção de lucro, contanto que haja uma harmônica integração. A empresa deriva de uma realidade econômico-social e haverá mais chances de êxito da empreitada empresarial quando atender a um anseio humano, como ocorreu com a 123 Milhas, pois os cidadãos brasileiros se viram muito atraídos pela facilidade e bom preço dos seus produtos.
Na atividade empresarial, devem ser respeitados os interesses internos e externos e abrange tanto os que contribuem diretamente para o funcionamento da empresa, como investidores e trabalhadores e a “comunidade” em que ela atua, mas a ausência de disposições legais claras sobre a função social da empresa a coloca a sob um vício lógico de contradição[1], porque acima de tudo buscam o lucro.
Numa situação de crise econômico-financeira, a recuperação judicial surge como instituto jurídico para a superação da crise e manutenção da fonte produtora, dos empregos e dos interesses dos credores, ou seja, a preservação da função social da empresa. Dessa forma, considerando o deferimento do pedido da recuperação judicial da 123 Milhas, a constatação prévia servirá para comprovar se a empresa mantém atividade operacional, como vinha desempenhando suas atividades e se há como se reerguer para cumprir todas as obrigações ainda em aberto.
No entanto, não se deveria conceder esses benefícios à custa de milhares de credores quirografários, consumidores, micro e pequenos empresários, sob o alicerce de um falso soerguimento da empresa que será incapaz de cumprir percentual expressivo das obrigações em aberto.
Isso porque os clientes compraram pacotes de viagem ou passagens aéreas e aguardam a entrega do produto ou de montante equivalente, mas é comum, sob a fundamentação de negociação coletiva, o deságio em desfavor de credores minoritários, podendo, por exemplo, o crédito de uma viagem ser reduzido a um reembolso de valor irrisório.
Ou seja, o sacrifício, a princípio, não deveria ser suportado por essa massa de consumidores antes de se esgotar todas os meios de recuperação dos recursos financeiros que a empresa 123 Milhas proporcionou de lucro aos seus sócios nos últimos anos, inclusive com a responsabilização dos sócios controladores.
A questão principal é de flagrante ofensa ao consumidor, protegidos por garantias fundamentais previstas na Constituição Federal e pelo Código de Defesa do Consumidor, com vistas a manter a ordem pública e o interesse social, pois são a parte mais vulnerável da relação, sendo mais de 700 mil consumidores assediados por diferentes canais de venda e induzidos a pensar que a 123 Milhas poderia oferecer de forma mais econômica qualquer assunto relacionado a viagem.
Se houve a livre iniciativa na partida, o que convém analisar é, se em razão de contratempos e pelos administradores terem se excedido nos riscos inerentes ao modelo de negócio, se os sócios devem realmente responder apenas pelo montante de suas responsabilidades, a depender do tipo societário, ou se devem suportar solidariamente a responsabilidade pelo ressarcimento aos credores prejudicados.
Por exemplo, na Justiça do Trabalho aplica-se a teoria menor de desconsideração da personalidade jurídica, de forma a atingir o patrimônio dos sócios da sociedade empresária, sendo desnecessária a comprovação de abuso de direito ou desvio de finalidade, pois basta a prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações[2].
Ainda sobre o tema, importantes reflexões podem ser compartilhadas da leitura do livro For Profit, de William Magnuson[3], chamando a atenção para quatro em especial: 1) acima de tudo, o empresário deve respeitar os fundamentos da democracia (República); 2) adotar objetivos de longo prazo; 3) competir no mercado de forma honesta; e, 4) não ficar com “o bolo” só para si (tradução livre).
Pelo exposto, depreende-se que no capitalismo é imprescindível que haja respeito ao coletivo, responsabilidade na gestão e compartilhamento de resultados, pois a empresa se dedica ao exercício de uma atividade econômica com vistas à produção de bens e serviços para a sociedade.
Diante dos pontos acima discorridos, a recuperação judicial pode não ser o caminho mais adequado ao caso, mas se mantida, sua finalidade não pode ser desvirtuada, pois se tratando de assunto de notório interesse público o caminho é de uma solução de maior proteção aos consumidores, dentre eles a desconsideração da personalidade jurídica, como forma de o Estado mostrar os freios necessários e desestimular que novos agentes econômicos se engajem em empreitadas empresariais, com ideias mirabolantes, a um grande custo para a sociedade.
Fonte: JOTA