Como evitar a recorrência de escândalos corporativos sem quebrar as empresas?

Definição de medidas a serem administradas depende de diagnóstico preciso. A última década tem sido pródiga em escândalos corporativos no Brasil. Os que acompanharam o noticiário do período vão se lembrar de episódios rumorosos nos setores de varejo, construção civil, mineração, alimentos, saúde e vinicultura. Além de perplexidade, casos do gênero costumam provocar duas outras reações. Uma é a apuração de responsabilidades, um esforço retrospectivo a cargo das autoridades competentes. A outra é a adoção de medidas voltadas a evitar sua repetição, um exercício de política pública, de natureza prospectiva.

Para serem eficazes e não produzirem efeitos colaterais indesejados, iniciativas deste segundo gênero devem basear-se em diagnóstico preciso dos problemas que pretendem enfrentar. Identificar a causa subjacente de ações ou omissões corporativas que se quer evitar é uma questão-chave. Duas suspeitas habituais são as de falhas de governança e de regulação[1]. Distingui-las é necessário, pois cada uma delas pode ser encarada com estratégias diferentes.

A governança corporativa busca mitigar riscos decorrentes da separação entre propriedade e administração em empresas. Acionistas minoritários, proprietários de uma companhia, nem sempre entendem o negócio da firma em toda sua complexidade e, por isso, podem ter dificuldades para monitorar a atuação de controladores e administradores.

Os tomadores de decisão podem, então, usar seu poder para extrair da companhia benefícios para si próprios. Isso pode ocorrer, por exemplo, por meio de transferência ilícita de ativos ou da manipulação de informações contábeis para motivar pagamentos de remunerações variáveis que, de outra maneira, não seriam devidas.

Detectada uma complicação dessa espécie, as figuras de controladores e administradores devem estar no centro das atenções[2]. Tanto quanto possível, deve-se evitar que investidores em participações minoritárias, que já contabilizam perdas com a expropriação pelos dirigentes da firma, sejam duplamente prejudicados com o aumento de penalidades impostas às pessoas jurídicas de que são coproprietários.

Essa preocupação interessa não apenas aos acionistas de determinadas companhias, mas à sociedade como um todo. Antes de comprar ações, espera-se que investidores antecipem a probabilidade de sofrerem aqueles dois tipos de perdas e reduzam o valor que estariam dispostos a pagar por elas. Com custo de capital mais alto, empresas passam a ter mais dificuldade de executar projetos que poderiam gerar empregos, recolhimento de tributos e outros ganhos sociais.

A questão, então, passa a ser como corrigir os incentivos de controladores e administradores. No caso brasileiro, um ponto de relativo consenso é que o alcance desse propósito depende do aumento da eficácia dos instrumentos de enforcement – isto é, de cumprimento forçado – dos deveres que lhes são impostos. Tais deveres são previstos para proteger acionistas minoritários e outros grupos afetados por atividades empresariais[3].

Um relatório de CVM e OCDE[4] sobre a proteção de investidores no Brasil é uma referência importante. Tal documento aponta que, apesar de numerosos, os mecanismos de tutela dos direitos de minoritários previstos em nossa legislação têm baixa eficácia e sugere estratégias para aumentá-la. Elas passam por aprimorar regras relativas a ações coletivas de natureza societária, ações derivadas[5] e arbitragens.

Em outras jurisdições, um instrumento de popularidade crescente são as cláusulas de recuperação (clawback provisions), que autorizam a companhia a recobrar pagamentos passados atrelados ao desempenho da firma, caso haja necessidade de se reconsiderarem resultados anteriores.

Eventuais reformas devem cuidar para que a intenção de elevar o grau de cumprimento de deveres de controladores e administradores não se desvirtue em punitivismo. Não apenas por uma questão de equidade, mas também para evitar o efeito colateral de desencorajar a tomada de risco. Retirar completamente os incentivos de administradores para executar projetos que podem não vingar privaria a sociedade do aumento do bem-estar proporcionado por atividades empresariais, que sempre envolve algum risco. Essa é a justificativa para que o cumprimento dos deveres fiduciários impostos aos administradores seja avaliado sob as lentes da regra de julgamento negocial – mais conhecida pelo seu nome estrangeiro, business judgment rule.

Quando se trata de fraudes, contudo, essa discussão não parece ter a mesma pertinência. Decisões de burlar a lei não têm natureza negocial e, por isso, não deveriam atrair as preocupações que justificam a business judgment rule e nem mesmo deveriam estar cobertas por seguros D&O[6].

Em síntese, reforçar o enforcement privado de deveres de controladores e administradores e distinguir o tratamento jurídico de condutas fraudulentas do da assunção legítima de risco são parte do receituário para se lidar com eventuais falhas de governança.

Já um problema de regulação acontece quando empresas não são adequadamente responsabilizadas por danos causados a terceiros. O exemplo clássico é o dos prejuízos decorrentes de danos ambientais que não são totalmente internalizados no balanço da firma que os causou[7]. Grupos que não mantêm relação contratual com a causadora dos danos e que, por isso, não podem adotar precauções jurídicas para evitar perdas ou facilitar sua reparação são os principais candidatos a vítimas aqui. O fato de eles figurarem entre os prejudicados por um escândalo corporativo é um sintoma a merecer atenção.

Assim como a falha de governança, a de regulação também incentiva administradores a perseguir objetivos socialmente indesejáveis. Neste caso, porém, a atuação imprópria aumenta o retorno esperado da companhia, em vez de reduzi-lo. Por isso, é um problema que justifica reformas com enfoque também nas pessoas jurídicas.

É preciso ter presente, contudo, que a solução aparentemente mais óbvia nem sempre será a mais adequada: aumentar o valor de penalidades pecuniárias impostas a empresas pode criar um cenário em que condenações draconianas frequentemente resultariam em sua insolvência, causando perdas sociais desnecessárias.

Diversas outras questões sobre o repertório para enfrentar problemas corporativos podem ser levantadas. O que não se pode perder de vista é que o primeiro passo para se evitar a sua recorrência é um diagnóstico preciso. Sem isso, a emenda pode ser pior do que o soneto: a resposta estatal arrisca não ser eficaz e ainda produzir efeitos colaterais, como a quebra de empresas que poderiam seguir em operação.

Fonte: JOTA

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