Essas novas visões do comportamento humano mostram o quanto o paradigma do homo economicus, tão festejado pela economia neoclássica, é distante do mundo real. Afinal, a ação econômica dificilmente pode ser explicada, ainda mais sob perspectiva generalizada, como a decisão racional e utilitarista de um ser humano isolado e sem referências sociais, culturais e históricas.
O reconhecimento de que a ação econômica é, antes de tudo, uma ação social é fundamental para enfatizar a importância dos laços sociais, dos networks e grupos, das emoções, das identidades e da cultura, das instituições, da cognição e do poder. Mais do que isso, a consideração de todos esses fatores ressalta a falácia da ideia dos mercados como espaços naturais de meritocracia, na medida em que ressaltam que muitos dos resultados econômicos de determinados agentes decorrem muito mais das posições sociais e políticas privilegiadas de que partem do que propriamente de seus maiores talentos ou esforços.
Nesse sentido, é imperiosa a referência ao capital social, conceito já bastante conhecido na sociologia, a partir das contribuições de tantos autores, como Pierre Bourdieu, e que reforça a importância das conexões e do reconhecimento social para o êxito econômico, especialmente no que diz respeito ao acesso a boas oportunidades de educação, de aprendizado e de trabalho.
Se o tema não é propriamente novo, pesquisa recente do professor de economia da Universidade Harvard Raj Chetty e sua equipe traz novas luzes para o assunto a partir de dois artigos publicados recentemente na Nature: “Social Capital I: Measurement and Associations with Economic Mobility” e “Social Capital II: Determinants of Economic Connectedness”.
A pesquisa foi feita a partir de um grande manancial de dados, abarcando 21 bilhões de conexões do Facebook, que cobriram 84% dos adultos norte-americanos entre 25 a 44 anos. De forma geral, uma das principais conclusões do estudo é a de que o capital social é mais complexo do que parece, pois não se trata apenas de quem você conhece, mas sobretudo com quem você cresceu e se desenvolveu na infância e na adolescência.
No primeiro artigo, os autores mostram que o capital social é medido pela força dos networks sociais e da comunidade a que o indivíduo pertence, o que se apresenta como um determinante potencial dos resultados que determinada pessoa alcançará em diversas áreas de sua vida, como educação, saúde e renda.
Antes de explicar os resultados, os autores esclarecem que há três tipos de capital social, que não necessariamente apresentam correlações entre si quando analisados em uma determinada comunidade ou grupo social: 1) a conectividade entre diferentes tipos de pessoas, tais como as existentes entre pessoas de baixo status socioeconômico e pessoas de alto status socioeconômico, 2) a coesão social, de que é exemplo a extensão dos cliques nos networks de amizades e 3) o engajamento cívico, tais como as taxas de voluntariado.
Um dos primeiros desafios da pesquisa foi estimar o capital social, tarefa considerada ainda mais difícil do que medir outras formas de capital, como o financeiro e o humano. Outro importante desafio foi diferenciar as formas de capital social, uma vez que algumas delas estão mais relacionadas a certos resultados do que outros. Nesse sentido, os autores destacam a importância da relação entre conectividade e mobilidade social.
Com efeito, uma das principais conclusões da pesquisa é que crianças que tiveram relações com pares que pertencem a famílias de alta renda acabam com maiores rendas do que as crianças que não tiveram essa oportunidade. De forma mais específica, crianças cujos pais apresentam baixo status socioeconômico, mas que cresceram em lugares com conectividade comparável à existente na média das crianças com alto status socioeconômico, apresentam um aumento na sua renda na fase adulta de 20% em média.
Tais dados mostram o quanto esse tipo de convívio está relacionado com a mobilidade econômica e social e com maiores chances de sair da pobreza. Mais do que isso, os autores procuram apontar como as diferenças em conectividade podem explicar as bem conhecidas relações entre mobilidade de renda e segregação racial, taxas de pobreza e desigualdade.
Uma das importantes conclusões da pesquisa é que conectividade não diz respeito apenas a acesso formal a oportunidades ou referências para empregos ou trabalhos. A conectividade tem a ver com a própria formação das preferências e aspirações, bem como com as escolhas sobre as trajetórias de carreira. A título de exemplo, quando uma criança cresce sem conhecer ou conviver com ninguém com curso superior, é mais provável que não desenvolva aspirações semelhantes.
Em entrevista sobre os artigos[1], o próprio Raj Chetty resume bem a conectividade: “It shapes your aspirations. It shapes the things that you think about, the career paths you think about pursuing”. Mais adiante, arremata: “What we’re learning is it’s not just about the resources people have. What this is suggesting is the sociological phenomenon of how people make decisions from childhood, what their aspirations are, what they choose to do, might be quite important”.
No segundo artigo, os autores procuram explorar o que efetivamente determina a conectividade, partindo do resultado anterior de que baixos níveis de interação social entre as diferentes classes sociais são preocupantes, na medida em que estão associados a resultados piores, como menores taxas de mobilidade de renda.
Para os autores, metade do que se chama de desconexão social entre as classes socioeconômicas é explicada pelas diferenças da exposição dos indivíduos a conexões com pessoas de alto status socioeconômico. A segunda metade é explicada pelos vieses de amizade – friending bias — que são moldados pela estrutura dos grupos a que pertencem as pessoas, já que estas tendem a se relacionar com pessoas parecidas com elas.
O friending bias costuma ser maior em grupos grandes ou mais diversificados e menores em organizações religiosas do que o são em escolas e locais de trabalho. De qualquer forma, é fundamental mapear a sua existência, pois a solução para a conectividade depende disso. Em comunidades nas quais o friending bias é alto, simplesmente colocar as pessoas para o convívio conjunto pode não ser suficiente para o desenvolvimento de laços entre indivíduos de diferentes status socioeconômicos.
Dentre algumas propostas para contornar o problema do friending bias está, por exemplo, a diminuição do tamanho do grupo nas escolas, pois isso é um incentivo para que todos se conectem entre si, ao contrário do que ocorre em grupos grandes, nos quais há tendência natural de fragmentações. Entretanto, as soluções são diversas e podem envolver até mesmo a reestruturação do espaço e do planejamento urbanos, a fim de se promover uma maior interação entre classes e raças – o que os autores chamam de cross-class interaction e cross-race interaction.
Parte importante do estudo é a que realça que os vieses de amizade não podem ser considerados apenas uma questão de preferência pessoal, pois são provavelmente moldados pelas práticas institucionais, de maneira que podem ser alterados mediante os devidos estímulos e incentivos.
De toda sorte, os próprios autores reconhecem que ainda há muito a pesquisar e que a maior consideração do capital social pode ser a chave para se entender melhor como ele pode afetar outros tipos de comportamento, incluindo os relacionados à saúde e até mesmo a formação de preferências políticas. Não obstante, uma prioridade seria utilizar todos os insights para introduzir medidas de conectividade econômica que podem aumentar a mobilidade de renda intergeracional.
Em um país como o Brasil, marcado por desigualdades, estudos como o mencionado são de fundamental importância para mostrar que mesmo ações afirmativas já em curso podem não ser suficientes para resolver o problema da mobilidade social.
Verdade seja dita que, diante da realidade brasileira, até mesmo a discussão sobre capital social acaba sendo ofuscada por prioridades mais imediatas, considerando que, para muitas crianças, o que está em jogo é a própria sobrevivência material, pois lhes falta tudo, incluindo o básico para viver – comida, teto, saúde e educação. Em outras palavras, a pobreza e a imobilidade social decorrem de uma falta de acesso a todos os recursos necessários para o livre desenvolvimento da personalidade, incluindo o capital social.
Não obstante, é importante que o conjunto de políticas públicas destinadas a resolver o problema da desigualdade, em prol de maior mobilidade social, possa considerar a questão do capital social, inclusive para o fim de que as crianças pobres também possam ter aspirações de uma vida melhor e com acesso a recursos que seus pais não tiveram. Com efeito, como Raj Chetty bem definiu, a falta de conectividade não apenas pode ter como resultado a falta de uma vida boa, como pode comprometer até mesmo a aspiração de se ter uma vida boa.
Entretanto, enquanto prevalecer o discurso raso da meritocracia, pouco se pode avançar em discussões como a proposta por Chetty, que envolvem a reflexão sobre mudanças institucionais e até mesmo de planejamento urbano e administração escolar.
Em um país em que é flagrante a aporofobia e em que governos e elites muitas vezes se utilizam do planejamento urbano e da arquitetura para segmentar espacialmente as cidades e os espaços de interação e convívio conforme o status socioeconômico dos cidadãos, os desafios são ainda mais delicados.
É por essas razões que as discussões sobre capital social são de extremo relevo, uma vez que realçam a complexidade da ação econômica e a importância dos laços sociais e da conectividade não apenas para a compreensão de como os homens agem, mas sobretudo das razões pelas quais agem de determinada maneira, já que a conectividade é fundamental para entender a formação das aspirações que serão os móveis de tais comportamentos.
Outra importante consequência do capital social é a de mostrar a falácia do discurso meritocrático, o que é ainda mais flagrante em países tão desiguais como o Brasil, em que o capital financeiro e o capital social têm se mostrado mais adequados para explicar as razões do êxito econômico de muitos agentes do que propriamente o talento e o esforço.
[1] Disponível em: https://news.harvard.edu/gazette/story/2022/08/how-childhood-friendships-sway-economic-mobility/. Tradução livre: Ela molda suas aspirações. Ela molda as coisas sobre as quais você pensa e as trajetórias de carreira que você pensa em perseguir. O que estamos aprendendo é que ela [referindo-se à conectividade] não é apenas sobre os recursos que as pessoas têm. O que isso está sugerindo é que o fenômeno sociológico de como as pessoas tomam decisões desde a infância, quais são suas aspirações, os que elas escolhem fazer, pode ser bastante importante.