Inovação trazida por MP e ilegalmente ampliada por portaria do Ministério da Fazenda restringe acesso ao Carf. É sabido que o novo governo federal vem manifestando severas críticas ao sistema de revisão administrativa das cobranças fiscais, em especial no que se refere aos recursos ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão paritário de revisão dos lançamentos fiscais, formado por corpo de julgadores técnicos representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes.
Além das críticas, vieram as medidas, é claro. E, assim, já nas primeiras semanas de janeiro foi editada a controversa Medida Provisória 1160, de 12 de janeiro de 2023 (MP 1160/23), que ressuscitou o voto de qualidade nos julgamentos do Carf, de modo que, em casos de empate, o resultado será definido pelo voto do presidente da turma, que necessariamente é representante da Fazenda Nacional. Tal alteração tem potencial de trazer prejuízos aos contribuintes, já que os votos de qualidade tendem a favorecer o posicionamento da Fazenda Nacional em casos controversos. Esse é um tema que vem merecendo a devida atenção da sociedade.
Ocorre que há outra alteração trazida pela MP 1160, regulamentada pelo Ministério da Fazenda na última semana (Portaria MF 20, publicada em 22/2/2023), que também merece a atenção dos contribuintes: a restrição ao acesso ao Carf de casos com valores de até mil salários-mínimos (em valores atuais, de até R$ 1.380.000). Indo além do que consta na MP 1160, a regulamentação prevê que o limite não considera os juros aplicados e incidentes sobre a autuação fiscal, o que, na prática, limita o acesso ao Carf a casos com valores em discussão muito superiores a R$ 1.380.000. Nesses casos, o contencioso administrativo é considerado de pequeno valor (causas até 60 salários-mínimos), ou de baixa complexidade (causas entre 60 e 1.000 salários mínimos), sendo decidido apenas no âmbito das Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJs).
As DRJs são órgãos de julgamento formados exclusivamente por auditores fiscais e suas sessões são realizadas a portas fechadas, de modo que os contribuintes e seus representantes não podem acompanhar a formação das decisões ou prestar esclarecimentos fáticos, muitas vezes extremamente relevantes para a correta solução da controvérsia.
Além disso, os julgadores das DRJs estão vinculados aos entendimentos firmados pela própria Receita Federal em atos normativos e soluções de consulta, por vezes controversos à luz do disposto na lei, o que não ocorre com os julgadores do Carf, que estão desvinculados das normas complementares editadas pela Receita, devendo atentar ao disposto na lei.
Assim, como bem pontuado por relatório divulgado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) constante do Acórdão 336/2021, essas divergências acarretam “a existência de dois marcos normativos diversos: um aplicável aos auditores fiscais da RFB no âmbito da fiscalização e das DRJ; outro aplicável aos conselheiros do Carf, no âmbito dos julgamentos”. Aliás, na mesma oportunidade o TCU constatou que o índice de reversão das cobranças no Carf gira em torno de 45%, o que reforça a relevância dessas divergências.
O limite imposto para acesso ao Carf, além de representar um cerceamento do direito de defesa dos contribuintes, acarretará uma violação ao princípio da isonomia, eis que a complexidade de uma causa não pode ser unicamente definida pelo valor envolvido. De fato, um mesmo assunto pode gerar autuações com valores diferentes em razão do porte do contribuinte autuado. Nesses casos, contribuintes com autuações juridicamente idênticas terão chances de defesa diferentes na via administrativa.
Fato é que a inovação trazida pela MP 1160 e ilegalmente ampliada pela portaria regulamentadora acabou por restringir o acesso de inúmeros casos ao Carf, prejudicando o exercício do direito de defesa das partes em discussões que podem trazer impactos relevantes aos contribuintes. Com efeito, nos dias atuais, não nos parece razoável supor que processos cujos valores de principal e multa somem até R$ 1.380.000 representem um impacto baixo à grande maioria dos contribuintes (conceito que, é bom lembrar, inclui pessoas físicas).
Embora a matéria esteja prevista em Medida Provisória, que ainda será analisada pelo Congresso Nacional, essa nova regra entrou em vigor a partir da sua regulamentação na última semana, inclusive para os processos em curso.
Assim, nos parece importante a ampliação das discussões sobre esse tema, para que a sociedade avalie, mediante as devidas reflexões, a pertinência dessa restrição. Até lá, os contribuintes prejudicados acabarão se vendo compelidos a recorrer ao Poder Judiciário, o que trará ainda maior complexidade e custo ao contencioso administrativo fiscal.
Fonte: JOTA