Lojas Americanas S.A. em foco: a hora da ‘mão pesada’ do Estado?

Não há mercado de capitais sem enforcement jurídico; o crédito e a confiança fazem a economia girar.

O Fato Relevante divulgado pelas Lojas Americanas S.A. (AMER3), no dia 11 de janeiro de 2023, reascendeu a atenção e os debates entre economistas e juristas acerca das responsabilidades e deveres fiduciários dos diretores de companhias. O caso, em síntese, pelo que veio a público, trata de “inconsistências contábeis”, que maquiaram um rombo de, aproximadamente, R$20 bilhões de reais.

Nessa esteira, o documento disponibilizado pela Companhia ao mercado, diz que “a área contábil da Companhia identificou a existência de operações de financiamento de compras […] nas quais a Companhia é devedora perante instituições financeiras e que não se encontram adequadamente refletidas na conta fornecedores nas demonstrações financeiras de 30/09/2022”. [1] Existem situações ainda bastante nebulosas, a começar pela concessão de uma liminar pela Justiça carioca que suspende cobranças de créditos contra a companhia; há também notícias sobre abertura de investigação da CVM, do MPF.

Trata-se, segundo noticiado, de mais um claro exemplo de Gerenciamento de Resultados, caracterizado pela ingerência discricionária e premeditada na divulgação das demonstrações contábeis, pelo indivíduo que possui poderes decisórios dentro da companhia, visando algum benefício privado (normalmente seus administradores). É um risco não desprezível que ocorre toda vez que gestão e propriedade da empresa (materializada na titularidade de ações) se separam em razão da assimetria informacional gerada entre acionistas e administradores.


Como se isso não bastasse, tem-se indícios de que os diretores envolvidos venderam R$ 210 milhões de reais em ações no segundo semestre de 2022[2], já prevendo as consequências que presenciamos nesta última semana.

Alguns dos grandes escândalos na história do mercado financeiro mundial tiveram como estopim, justamente, o gerenciamento de resultados por parte dos diretores como bem demonstram Milhaupt e Pistor[3]. Não se pode olvidar, por exemplo, do caso do Banco Panamericano (PAS CVM 01/2011), e de um dos cases mais lembrados pela academia e pelo mercado, o caso da Enron, nos Estados Unidos.

Vejamos que, em ambas situações, os problemas ocorreram pela atuação de um diretor – agente fiduciário – em detrimento dos acionistas – principais ou representados. A Enron, por exemplo, alavancava-se financeiramente por intermédio de sociedades específicas (paralelamente às SPEs ou SCPs no Brasil), e contabilizava a alavancagem como lucro, sem o devido lançamento das partidas dobradas na rubrica dos passivos. O Banco Panamericano, por sua vez, sustentava em suas demonstrações financeiras diversos ativos que já haviam sido vendidos ou liquidados, além de contabilizar em dobro algumas operações de venda.

Apesar de ainda não se saber – mas imaginar – o motivo ou destino do gerenciamento de resultados nas demonstrações financeiras da AMER3, é sabido que, tanto na Enron quando no Banco Panamericano, os Diretores utilizavam tal estratégia para receber bônus.

Chama atenção o fato de que todas estas companhias possuíam, pelo menos aparentemente, estruturas robustas de governança corporativa. O Banco Panamericano era listado no Nível 1 da B3 e contava, adicionalmente, com as estruturas de governança exigido pelo Banco Central às Instituições Financeiras. A AMER3, por sua vez, é listada no segmento “Novo Mercado”, que, segundo a própria B3, “conduz as empresas ao mais elevado padrão de governança corporativa”.[4]

O que, então, possibilitou que essas fraudes fossem cometidas? A governança corporativa não foi suficiente?

Ora, no mundo real, leis, normas e regras (inclusive societárias e de mercado de capitais) não são nada mais do que incentivos comportamentais. Elas representam um custo ao indivíduo tomador de decisão (inclusive administradores) em seu cálculo de custo/benefício entre fazer ou deixar de fazer algo. Assim sendo, para que os incentivos pretendidos pelas normas, inclusive de governança, atinjam o fim almejado, eles necessitam de enforcement, ou seja, aplicação eficiente das sanções legais – inclusive aquelas de natureza penal – a fim de que haja poder dissuasório. Os problemas das fraudes perpassam, portanto, por diversas nuances: falhas contratuais, assimetria de informações, racionalidade limitada, mas encontram seu habitat natural quando o sistema jurídico não dá uma resposta eficiente em termos de sanção.

A Análise Econômica do Direito acertou justamente ao colocar na mesa os conceitos sobre a racionalidade humana: o indivíduo é (limitadamente) racional, maximizador do próprio bem-estar e averso ao risco. Talvez as discussões sobre ESG e governança tenham esquecido desse aspecto fundamental: lidamos com seres humanos.

Dentro dessa nuance, considerando que o agente potencialmente desonesto é um indivíduo racional e maximizador do seu próprio bem-estar, este agente irá analisar três variáveis para tomar a decisão de praticar, ou não, determinada fraude: (i) benefício do ilícito; (ii) custos da severidade da pena; e (iii) probabilidade de aplicação desta pena. Assim, “para que um crime seja cometido o resultado final dessa análise custo-benefício terá que ser positivo”[5].

Ora, se cada indivíduo busca maximizar o próprio bem-estar, existe um potencial conflito de interesses entre acionistas e administradores. A fidúcia da relação se dá justamente pelo fato de que o representado (acionista) confia que o agente (administrador), mesmo com interesses distintos, irá zelar pelo bem-estar da companhia.

Ao mesmo tempo que o administrador tem, em regra, muito mais facilidade em acessar e interpretar informações do que os acionistas – e outros stakeholders como empregados, consumidores – os principais não possuem incentivos em monitorar o agente, principalmente em companhias com capital pulverizado (o que nos remete ao efeito free rider, custos de coordenação e monitoramento). Isso, por sua vez, faz com que exista um “automonitoramento” por parte dos diretores que, sabendo que os interessados não podem/conseguem verificar a fundo toda a sua atividade, possuem incentivos para performar comportamentos oportunistas.

Tanto o próprio direito societário como a governança corporativa possuem como principal objetivo a mitigação destes problemas de conflito de interesses. Infelizmente, considerando o nível de enforcement do direito societário e de mercado de capitais no Brasil pelo estado, há indícios de que a autoregulação perde força para impedir gerenciamentos de resultados e fraudes.

Nessa esteira, conforme levantamento realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria, dentre 4.236 (quatro mil, duzentos e trinta e seis) casos julgados pela CVM, envolvendo pessoas naturais, entre 25/01/2000 e 26/03/2019, 46,8% foram absolvidas, 40,4% sofreram uma pena de multa, 6,1% advertência, 4,9% inabilitação, 1,3% proibição e 0,5% suspensão. O estudo mostra, ainda, que dentre os 231 (duzentos e trinta e um) administradores julgados, 94 foram absolvidos, 103 foram multados, 16 sofreram advertência, 15 foram inabilitados, 3 foram proibidos e nenhum foi suspenso. Dentre os diretores acusados, os desfechos seguem praticamente a mesma proporção: 44,5% foram absolvidos e 42,7% foram multados. Apenas 0,4% foram suspensos. Enquanto 87,2% foram absolvidos ou condenados à pena menos severa, apenas 0,5% foram condenados à pena mais severa.

Deduz-se, portanto, que os órgãos de controle e fiscalização possuem um enforcement, considerando a severidade da pena e a probabilidade de aplicação, relativamente baixo: 92,2% das multas tiveram um valor entre R$ 10.000,00 e R$ 1.000.000,00. Apenas 6,3% entre 1 e 10 milhões e 1,5% mais de 10 milhões de reais.

Ademais, outros estudos empíricos, com foco mais qualitativo, concluíram que a atuação do MPF é insuficiente, tanto no campo de propositura de ações coletivas, como no campo da responsabilização criminal, assim como a própria atuação do Poder Judiciário em casos individuais de acionistas não parece adequado. Corroborando com as afirmações acima, Viviane M. Prado constatou, “pelo levantamento da jurisprudência realizado nos tribunais estaduais e federais do Sul e Sudeste do país, não aparece nenhum em que o pleito de investidores alcançou êxito, com decisão transitada em julgado.”[6] Ainda, Bottino e Oliveira apuraram que em pelo menos 6 (seis) anos após a entrada em vigor da Lei n. 10.303/2001, ainda não havia “qualquer julgamento pelos tribunais superiores de casos relacionados aos crimes contra o mercado de capitais”[7].

Há, aqui, portanto, a aparente necessidade da “mão pesada do estado” aplicando de modo eficiente as sanções previstas em lei e, para tanto, o Poder Judiciário deve se conscientizar do papel que tem, funcionando não apenas em situações excepcionais políticas com extremo rigor, mas também em situações como a presente. Não há plena democracia sem economia de mercado. E não há mercado de capitais sem enforcement jurídico. Como já mencionamos em outra oportunidade, não devemos criar um aparato judicial que funcione bem apenas para o devedor. É o crédito e a confiança que fazem a economia girar!

fonte: Jota

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