Um novo pacto federativo para a gestão do SUS: os estados na cena

Experiência da Covid-19 deve inspirar construção de uma nova estrutura de governança tripartite na saúde.
O resultado das eleições de 2022 será decisivo para o futuro do SUS e da saúde no Brasil. Além do presidente da República, deputados federais e um terço dos senadores, serão eleitos governadores e deputados estaduais dos 26 estados e do Distrito Federal. O quadro sanitário que espera os novos governantes em 2023 será de uma complexidade sem precedentes.

Além de mais de 667 mil mortes pela Covid-19, a descoordenação nacional do SUS sob o governo de Jair Bolsonaro provocou uma prolongada redução na produção assistencial no país. Comparando 2020 com o ano anterior, houve queda de 25% no total de procedimentos realizados no SUS. Exames diagnósticos, consultas médicas e cirurgias de média complexidade foram os mais afetados. Dados mais recentes do Ministério da Saúde mostram que apesar da recuperação, a produção de 2021 e dos primeiros meses de 2022 segue inferior à de 2019.

A redução na capacidade de produção do SUS contrasta com a necessidade de ampliação da oferta assistencial à saúde no país. Além da pandemia, a degradação da situação econômica do país tem levado a um crescente número de pessoas vivendo em situação de miséria. Segundo o Ministério da Cidadania, entre 2020 e 2022 o número de famílias em situação de extrema pobreza inscritas no CadÚnico saltou de 13,5 milhões para 17,5 milhões. O crescimento da pobreza gera maior adoecimento e consequente aumento na demanda por serviços de saúde.

Diante desse quadro, tem ocorrido um crescimento de necessidades de saúde não assistidas. Os prejuízos para a saúde da população são diversos, afetando principalmente os mais vulneráveis. A redução na produção de ações preventivas, como rastreio de câncer, traz como consequência o aumento do número diagnósticos tardios. Neoplasias diagnosticadas em estadiamentos mais avançados têm maior letalidade e exigem tratamentos mais onerosos. Para pacientes que precisam de tratamentos que não podem ser adiados, como quimioterapia ou cirurgias, o atraso na realização de procedimentos pode agravar irreversivelmente a sua condição clínica.

O exemplo mais visível da redução da capacidade de produção do SUS, porém, está na queda da cobertura vacinal. Antes exemplo internacional de sucesso, alcançando coberturas superiores a 95% da população-alvo, o baixo percentual de cobertura vacinal — inferior a 60% em 2021 — é hoje uma das mais sérias ameaças para o ressurgimento de surtos de doenças causadas por infecções que podem ser prevenidas.

Enfrentar a difícil situação de saúde do país vai exigir dos governantes eleitos esforços coordenados para fortalecer o SUS e a capacidade de estabelecer um novo pacto federativo que enfatize o papel dos estados na gestão tripartite do sistema de saúde.

Além de definir a saúde como um direito de cidadania e um dever do Estado, a Constituição de 1988 estabeleceu um pacto federativo para democratização do país após a ditadura militar. Os municípios foram reconhecidos como ente federativo, com autonomia financeira, administrativa e política, ampliando suas responsabilidades para prestação de serviços públicos, incluindo a saúde. Coube ao governo federal o papel de definir prioridades nacionais, desenhar políticas e criar mecanismos para apoiar sua implementação pelos níveis subnacionais de governo.

Porém, o papel dos governos estaduais ficou mal desenhado na estrutura federativa. Como resultado, a descentralização da gestão do sistema de saúde do âmbito federal para os municípios ao longo dos anos 1990 ocorreu com baixo envolvimento dos governos estaduais.

A municipalização do sistema de saúde trouxe importantes benefícios para a população. Permitiu capilarizar a rede assistencial num país continental e incluir municípios menores e mais pobres no SUS, levando acesso a serviços de saúde para regiões antes desassistidas. Porém, a ausência de uma intermediação entre o nível federal e os municípios levou a falhas na implementação de políticas nacionais a nível regional e no equilíbrio das grandes diferenças de capacidades técnicas e administrativas para prestação de serviços de saúde entre municípios.

A partir dos anos 2000, foram implementadas diversas estratégias para organizar regiões de saúde no SUS. Em 2001 e 2002, o Ministério da Saúde estabeleceu Normas Operacionais da Assistência à Saúde (NOAS) para normatizar o processo de planejamento da oferta de serviços, recursos e investimentos em saúde entre municípios numa mesma região geográfica. Em 2006, o Pacto pela Saúde estabeleceu colegiados regionais de gestão, buscando implementar um processo de gestão compartilhada no âmbito das regiões de saúde. Em 2011, o Decreto 7.508 introduziu Contratos Organizativos de Ação Pública (COAP) com objetivo de definir responsabilidades entre esferas de governo pela gestão do SUS com base nas regiões de saúde.

Porém, apesar dos importantes avanços na consolidação de um sistema de gestão colaborativa entre esferas federativas no SUS, com a constituição das comissões inter-gestoras [Tripartite (CIT), Bipartite (CIB) e Regionais (CIR)], os arranjos e instrumentos estabelecidos foram insuficientes para integrar serviços em redes assistenciais nas regiões de saúde. Consequentemente, persiste grande fragmentação, redundância e, principalmente, lacunas na atenção à saúde em várias regiões do país, como ficou explicito na diferença de capacidades de resposta à Covid-19.

Em grande parte, as falhas na regionalização do SUS ocorreram em razão do papel coadjuvante que os governos estaduais assumiram historicamente na gestão do sistema de saúde. Porém, se a gestão do governo Bolsonaro foi calamitosa para agravar o impacto da pandemia, a conjuntura forçou os governos estaduais a entrarem em cena na gestão do SUS.

Ainda que com grandes diferenças, governos estaduais assumiram um inédito protagonismo na coordenação do SUS na resposta à Covid-19. Estudos demostraram que intervenções de saúde pública para reduzir a transmissão do vírus e esforços para expandir a oferta assistencial ajudaram a mitigar efeitos da epidemia em regiões com maior vulnerabilidade socioeconômica.

Além disso, destacou-se a atuação do Conselho Nacional de Secretarias Estaduais de Saúde (CONASS). Diante da ameaça de distorção de dados pelo governo federal, o CONASS, em parceria com consórcio de órgãos de imprensa e pesquisadores de universidades brasileiras, teve papel-chave no monitoramento da situação da pandemia no país, além de divulgar orientações sobre o combate à Covid-19 em contraponto às fake news propaladas pelo presidente da República e à gritante omissão de seus ministros da Saúde.

A experiência na resposta à Covid-19 deve inspirar a construção de uma nova estrutura de governança tripartite no SUS em que os governos estaduais assumam maior protagonismo em diferentes aspectos estratégicos da gestão do sistema. Além da conformação e regulação de redes de serviços de atenção, os estados devem coordenar junto aos municípios nas regiões de saúde o direcionamento de recursos para investimentos em infraestrutura e tecnologias — em especial tecnologias de informação — bem como orientar a formação e apoiar o provimento de profissionais de saúde em áreas de necessidade para o SUS.

Garantir um maior envolvimento dos estados na gestão da saúde, porém, não é um desafio que se resolve apenas no âmbito do SUS. Trata-se de uma questão federativa que requer repactuar papéis, responsabilidades e o financiamento da saúde entre as esferas de governo. A eleição de 2022 será uma oportunidade para fazer esse importante debate.

Fonte: Jota por ADRIANO MASSUDA

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