É preciso atenção para que ações indenizatórias não sirvam a papéis que o instituto não foi desenhado para atender.
Nas últimas semanas, os veículos tradicionais de imprensa e as redes sociais foram inundadas de notícias sobre o julgamento da ação indenizatória movida pelo ator Johnny Depp contra a atriz Amber Heard no estado americano da Virgínia.
Depp pediu a condenação da atriz em uma indenização de US$ 50 milhões, alegando ter sofrido difamação em virtude de um artigo de opinião escrito por Heard e publicado em dezembro de 2018 no jornal The Washington Post, sob o título “I spoke up against sexual violence – and faced our culture’s wrath. That has to change”.[1]
No artigo, Heard não menciona o nome de Johnny Depp, limitando-se a afirmar que foi “exposta ao abuso quando ainda muito jovem” e que havia se tornado, “nos últimos dois anos, uma figura pública representando abuso doméstico”. O texto concentra-se nas reações negativas que Heard sofreu em virtude de sua defesa dos direitos das mulheres, incluindo o descumprimento de contratos que já havia firmado para atuar em filmes e campanhas publicitárias. E clama pelo fortalecimento de instituições que apoiem as mulheres na denúncia à violência doméstica.
Na ação judicial movida por Depp, Heard alegou, em resposta ao pedido indenizatório de US$ 50 milhões, que se limitou a agir em legítima defesa. Além disso, apresentou um pedido indenizatório contraposto de US$ 100 milhões, afirmando que foi ela quem sofreu difamação em virtude da manifestação de um ex-advogado de Johnny Depp, que havia declarado ao jornal Daily Mail que as alegações de violência doméstica eram uma “farsa” (hoax).
O júri chegou a um veredito no último dia 1º, vislumbrando difamações de lado a lado, mas caracterizando a atuação da atriz como intencionalmente lesiva (malice) e mais danosa que aquela perpetrada pelo advogado de Depp. Assim, o júri condenou Heard ao pagamento de US$ 10 milhões, em indenização compensatória, e US$ 5 milhões, em indenização punitiva, ao passo que Depp foi condenado ao pagamento de US$ 2 milhões em indenização compensatória e não restou condenado ao pagamento de qualquer indenização a título punitivo.
O caso Depp x Heard, que envolve outras tantas frentes de litígio e polêmicas que transcendem em muito o aspecto indenizatório, suscita algumas reflexões sobre os papéis da responsabilidade civil em um mundo caracterizado, de um lado, pela continuada opressão das minorias, inclusive no campo do debate público, e, de outro lado, por uma superexposição midiática, que conduz, não raro, a pré-julgamentos pela opinião pública, inclusive com aplicação de “penas”, como o chamado cancelamento nas redes sociais e outras formas de punição imunes ao controle de legalidade e à dosimetria das penas.[2]
Um primeiro aspecto que despertou atenção no julgamento foi a aplicação de indenização punitiva – os chamados punitive damages, traduzidos de modo equivocado no Brasil como “danos punitivos”. A atribuição de uma função punitiva à responsabilidade civil, conquanto conhecida do common law, é estranha à tradição romano-germânica em que a responsabilidade civil desempenha, historicamente, uma função exclusivamente reparatória (restrita à reparação dos danos sofridos pela vítima), enquanto a tarefa de punir é deixada ao direito penal.[3] Nada obstante, há valorosas teses no Brasil defendendo a incorporação de uma função punitiva,[4] especialmente nos casos de ofensas repetitivas.
Mesmo nos estados norte-americanos que admitem a indenização punitiva, sua aplicação é cercada de garantias típicas do processo penal, como a própria competência do júri – o que, paradoxalmente, acaba levando a indenizações muito elevadas, já que o júri, como expressão direta da opinião do povo, tem maior liberdade de fixação do quantum e compromisso naturalmente menor com a fundamentação técnico-jurídica da decisão e as balizas aplicadas em outros precedentes judiciais da mesma corte.
Para evitar indenizações estratosféricas, muitos estados norte-americanos têm imposto tetos legais às indenizações punitivas. É exatamente o que ocorre na Virgínia, onde a indenização punitiva fixada pelo júri do caso Depp x Heard em US$ 5 milhões foi, subsequentemente, reduzida pela juíza para o valor de US$ 350 mil.
Um outro aspecto que pode ser destacado é aquele que diz respeito à chamada função simbólica da responsabilidade civil. A imprensa especula que Amber Heard não será capaz de arcar com o valor da indenização, mas também se aposta que Johnny Depp não pretende efetivamente cobrar o montante fixado pelo júri. Cogita-se de um acordo que a impeça de se manifestar publicamente contra ele ou outras soluções que não o efetivo pagamento, uma vez que o objetivo do julgamento já teria sido alcançado no plano da exploração midiática. Em outras palavras, o papel simbólico da condenação pode atender mais ao interesse do autor que o pagamento da verba indenizatória.
A depender do caso em discussão, a função simbólica pode se converter em função pedagógica ou dissuasiva de certas condutas (o conhecido deterrence do direito norte-americano). Tanto indenizações punitivas quanto indenizações compensatórias de elevado valor produzem, se amplamente divulgadas, um efeito de desincentivo à adoção de certos comportamentos que pode ser benéfico ou maléfico à sociedade.
No caso Depp x Heard, uma das primeiras declarações da atriz, após o veredito, foi de que ela havia perdido o direito de “falar livre e abertamente”.[5] A liberdade de expressão, tão exaltada no sistema jurídico norte-americano, teria sido ferida. De outro lado, juristas alegaram que o caso não tratava de liberdade de expressão, mas sim de “credibilidade” (credibility), uma vez que o júri teria concluído que Heard “mentiu e sabia que estava mentindo”.[6] A conclusão não deixa de suscitar discussões, uma vez que o objeto central da ação judicial movida nos Estados Unidos não era a violência doméstica em si, mas sim os efeitos da publicação do artigo de opinião de Amber Heard no The Washington Post.
A pergunta que talvez mais interesse em tudo isso é a seguinte: pode a decisão do júri desestimular a denúncia de casos de violência doméstica? Se a resposta for afirmativa, pode-se acabar produzindo o efeito oposto àquele declaradamente pretendido pela atriz em seu artigo – que, de resto, continua no ar, acrescido de uma nota do jornal sobre o resultado do julgamento, ainda sujeito a recurso.[7] Em meio à miríade de novas funções (e.g., reparatória, punitiva, simbólica e dissuasiva) que vêm sendo atribuídas à responsabilidade civil nos tempos atuais, o certo é que cumpre ter redobrada atenção para que ações indenizatórias estejam sempre à disposição das vítimas, mas não acabem servindo a papéis que o instituto não foi adequadamente desenhado para atender.
[1] Em tradução livre: “Eu me manifestei contra a violência sexual – e enfrentei a ira da nossa cultura. Isso precisa mudar”.
[2] Para mais detalhes sobre estes temas, ver Peter Coffin, Cancel Culture: Mob Justice or a Society of Subscriptions? e Viktor Mayer-Schönberger, Delete: the virtue of forgetting in the digital age, Princeton: Princeton University Press, 2009.
[3] Seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos, 6ª ed., São Paulo: Atlas, 2015, pp. 211-217.
[4] Confira-se, por todos, o estudo de André Gustavo Corrêa de Andrade, Dano Moral e Indenização Punitiva: os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, passim.
[5] Declaração publicada no Daily Mail (dailymail.co.uk) em 1º de junho de 2022: “I’m sad that I lost this case. But I am sadder still that I seem to have lost a right I thought I had as an American – to speak freely and openly”.
[6] Reportagem de Erin Snodgrass, Kelsey Vlamis e Jacob Shamsian, publicada em 2 de junho de 2022 no Insider, sob o título “Amber Heard said she lost the right to ‘speak freely’ but experts say the Johnny Depp case was not a free speech issue but a credibility issue”.
[7] Reportagem de Matthew Weaver, publicada em 2 de junho de 2022 no The Guardian, registra que “Amber Heard reportedly plans to appeal against Johnny Depp defamation verdict”.
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