A graça, a doutrina e o caso Daniel Silveira

Concessão de um indulto individual antes do trânsito em julgado estaria apta a manter efeitos da condenação? Antes de tudo, uma breve contextualização. Na última quarta-feira (20), o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou o deputado federal Daniel Silveira a uma pena de mais de oito anos pela prática dos crimes de tentativa de impedir o livre exercício dos poderes e coação em processo judicial. Esse caso é, sem dúvidas, extremamente peculiar, não só em razão da condenação de um congressista no exercício do mandato a uma pena elevada, mas também por aplicar efeitos secundários graves, como a perda do mandato e a suspensão dos direitos políticos.

Há, além disso, a questão da possível violação ao sistema acusatório, uma vez que o Inquérito que apurou os atos de Daniel Silveira foi presidido por Alexandre de Morais, que cumulava, a um só tempo, a posição de ministro relator e, também, de vítima no processo.

Durante sua live semanal, o presidente da República anunciou a concessão de graça, por meio do Decreto de 21 de abril de 2022, ao deputado federal. Doutrinadores, de imediato, publicaram em suas redes sociais uma série de argumentos contra o ato; tais posições serão o objeto de debate deste artigo.

Primeiramente, tratemos do argumento que aponta a existência de vício decorrente da concessão ter ocorrido antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. A resposta, nesse caso, pode ser encontrada na própria jurisprudência do STF, que, em mais de uma oportunidade [1], [2] reconheceu que concessão de indulto não reclama o trânsito em julgado.

Em seguida surge uma reflexão que tem direta conexão com a alegação acima. Trata-se de um ponto consolidado na jurisprudência que merece atenção: segundo o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) na sua súmula 631, a graça atingiria apenas a pena, tornando-a inaplicável, mas não alcançaria os seus efeitos secundários. Assim, a perda do mandato e a suspensão dos direitos políticos subsistiriam. Sobre esse argumento, indaga-se: estaria a concessão de um indulto individual (graça), antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, apta a manter os efeitos da condenação?

A resposta passa, inicial e necessariamente, pela verificação da natureza da graça. Em seu artigo 107, III, o Código Penal elenca esse instituto entre as causas extintivas de punibilidade, mas não a regula para além disso. A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), por sua vez, assume a tarefa de forma simples, delineando o procedimento que deverá ser observado para aplicação do indulto, porém sem estabelecer qualquer tipo de limitação, como, por exemplo, se o momento para sua concessão pode ocorrer antes ou depois do trânsito em julgado.

Esse detalhe é de grande importância para a questão, pois, caso permaneça o posicionamento de que é possível a concessão do indulto antes do trânsito em julgado, deve-se observar que a extinção da punibilidade deve ser declarada pelo Juízo, uma vez que o processo não mais poderá mais subsistir. Assim, extinta a punibilidade, não haverá trânsito em julgado da sentença condenatória, requisitos essenciais à adoção de qualquer efeito penal, seja a aplicação de qualquer das modalidades de pena, seja a adoção dos efeitos secundários da condenação.

Outro argumento trazido ao debate foi de que o ato caracterizaria um crime de responsabilidade em duas hipóteses diferentes (Lei do Impeachment): 1) artigo 12, I (impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário); e 2) artigo 6º, 5 (opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças).

Sobre tais teses, é importante ressaltar que a graça é uma prerrogativa estabelecida pelo Poder Constituinte Originário. Trata-se de instrumento inserido na lógica dos checks and balances, podendo, inclusive, ser enxergado como uma exceção ao Poder Judiciário. Diante disso, ainda que o instituto possa não ser visto com bons olhos em razão de suas origens absolutistas, é importante reconhecer que estamos diante de uma escolha legítima — e democrática — do constituinte. Dessa forma, não nos parece possível exigir responsabilização, por via de um instrumento jurídico-político, pelo exercício de um poder constitucionalmente garantido. Vale ressaltar que, certa feita, o próprio presidente se valeu de argumento semelhante, quando, falando aos apoiadores, alegou que não poderia vetar a Lei Orçamentária — uma prerrogativa constitucional — sob pena de incorrer em crime de responsabilidade.

Há nessa tese, contudo, um argumento de realpolitik subjacente, é dizer, o reconhecimento implícito de que o Congresso poderia, se assim desejasse, optar por reconhecer o fato como um crime de responsabilidade, o que representaria, no caso, o exercício de um juízo jurídico-político pelo Legislativo. Custamos a acreditar, entretanto, que aqueles que defendam o enquadramento na Lei de Impeachment estejam advogando uma tese que garantiria ao Parlamento o poder de realizar interpretações tão alargadas.

Soma-se aos argumentos contra a concessão da graça a alegação de outro vício, decorrente, dessa vez, da justificativa — sem necessidade — feita pelo presidente, segundo o qual o ato estaria sendo implementado em razão de uma interpretação errada emitida pelo STF, a quem caberia a “última” palavra sobre a Constituição. Sobre esse ponto, a teoria constitucional parece fornecer boas respostas.

A ideia segundo a qual o Supremo tem a última palavra está inserida no contexto da discussão sobre qual instituição dispõe das melhores condições para resolver casos controvertidos. Sustentar que o STF detenha essa atribuição traduz, simultaneamente, uma posição com baixo grau de legitimidade democrática e pouco comprometida com as teorias constitucionais contemporâneas. Explicamos.

Segundo a teoria dos diálogos institucionais — já adotada pelo Supremo no julgamento da ADI 5105 —, que retira seus fundamentos da preocupação com a “legitimação das atividades realizadas pelos poderes” [3], propõe-se, em substituição à tradicional leitura da separação de poderes, uma formulação de respostas de casos difíceis baseada em dois aspectos: 1) “as decisões, tomadas em qualquer um dos poderes, passam a ter um caráter parcialmente definitivo, pois, podem ser contestadas em outras instâncias públicas”; e 2) “cada espaço de poder possui características que o potencializam ou o inibem para a realização de tomada de decisões”.[4]

No mesmo sentido dispõe o departamentalismo, cuja semente foi plantada por Andrew Jackson — presidente dos Estados Unidos — em sua mensagem de veto à prorrogação do funcionamento do Banco Nacional americano, em 1832.[5] Para essa teoria, “não há um intérprete superior da Constituição, devendo todos os Poderes realizar uma interpretação constitucional coordenada”.[6] Ambas as teses caminham no sentido de reconhecer um argumento cuja simplicidade é inversamente proporcional à elegância: que a Constituição não pertence a um só Poder, tampouco que pode por quaisquer deles ser sequestrada.

O sentido da Constituição, se a preocupação com a sua legitimidade for levada em conta, é fruto de interpretações intersubjetivas em um exercício dialógico. O Executivo, o Legislativo e, sobretudo, o próprio povo, são titulares tão legítimos da interpretação constitucional quanto o Judiciário. Não reconhecer, portanto, o papel democrático interinstitucional de construção dos sentidos da Constituição, é optar por um caminho de pouco respeito ao próprio povo, de quem emana todo o poder.

Mais sensato — e mais coerente com a própria jurisprudência do STF — seria advogar a tese da teoria dos motivos determinantes. Aqui, contudo, também existem questões que precisam ser enfrentadas para a aplicação de teoria. Primeiro seria necessário admitir o problema que existe em permitir que o mesmo tribunal que condenou o réu possa analisar o indulto que o beneficiará. Em segundo, e não menos importante, é inescapável o reconhecimento da ampla discricionariedade de natureza política conferida ao ato.

O que se tem enxergado, diante desse imbróglio, é uma tentativa de colonização da política pelo Direito. O ato de concessão de graça, enquanto instituto de natureza política — e com alto grau de discricionariedade —, segue sendo atacado por meio de argumentos que se recusam a enfrentar esse fato. Não se está, aqui, a defender uma prerrogativa instrumentalizada de maneira absolutista. A graça possui requisitos e limites, tanto constitucionais quanto infraconstitucionais. Contudo, o seu mecanismo de controle por excelência é irremediavelmente político, qual seja, o voto. O poder de perdoar continua, assim, pertencendo ao povo, que vai julgar o presidente dentro da seara política.

A realidade é que o Direito nem sempre — talvez na minoria das vezes — vai nos brindar com soluções satisfatórias. A não ser que estejamos confortáveis com o aprofundamento da crise político-jurídica que tomou conta do Brasil na última década, não podemos admitir que as repostas para problemas de natureza política sejam obtidas do processo de colonização da política pelo direito.

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 87.801. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 02 maio 2006.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 105.022. Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 12 abr. 2011.

[3] CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Diálogos institucionais: estrutura e legitimidade. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 2, n. 3, p. 183-206, set./dez. 2015, p. 184. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rinc/a/4m6g6DbMwXn6sRM37f6vPxD/?lang=pt. Acesso em: 18 abr. 2022.

[4] Ibid., p. 189.

[5] BEZERRA DE MENEZES, David S.; SILVA, Christiano Mota e. McCulloch v. Maryland, 1819: Nós, os Estados soberanos? In: Rodrigo Frantz Becker. (Org.). Suprema Corte dos EUA: casos históricos. São Paulo: Almedina, 2022, p. 66-86.

[6] CASAGRANDE, Cássio Luís; BARREIRA, Jônatas Henriques. O caso McCulloch v. Maryland e sua utilização na jurisprudência do STF. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 56, n. 221, p. 247-270, jan./mar. 2019, p. 259.

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