Debate da retomada do crescimento econômico não deve passar ao largo da desigualdade de gênero. Com o foco na união, e não a divisão de lados, a discussão deve envolver toda a sociedade, em um esforço conjunto que pode se iniciar na via judicial e desaguar na materialização de políticas públicas e na consequente realização de direitos fundamentais por meio da tributação.
Primoroso trabalho vem sendo desenvolvido pelo grupo de estudos Tributos a Elas, criado por procuradoras da Fazenda Nacional e coordenado pela FGV-SP, no qual se sugere a desoneração, no âmbito da reforma tributária, como ferramenta para a busca da redução da desigualdade de gênero [1]. Belíssimo exemplo que as ilustres procuradoras da Fazenda Nacional, idealizadoras do movimento, estão promovendo ao pensar nas mulheres como mulheres, não as inserindo no maniqueísmo comum à esfera tributária, isto é, na sempre existente dicotomia contribuintes x fisco.
Por meio de solos férteis como esses, a discussão sobre tributação, política fiscal e igualdade de gênero tem avançado cada vez mais para ganhar espaço nos debates acadêmicos e na formação de precedentes, mas ainda são tímidos quanto à execução de políticas públicas. Todavia, as mudanças recentes no ambiente do Legislativo e do Executivo trouxeram à tona algum otimismo. No último ano, por exemplo, o combate à pobreza menstrual ganhou dimensão [2] e, em conjunto, a tributação na venda de absorventes íntimos.
Nesse sentido, foi firmado, pelo Confaz, o Convênio ICMS nº 187, de 20 de outubro de 2021, por meio do qual:
“os estados e o Distrito Federal ficam autorizados a isentar do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) — as operações realizadas com absorventes íntimos femininos, internos e externos, tampões higiênicos, coletores e discos menstruais, calcinhas absorventes e panos absorventes íntimos, NCM 9619.00.00, destinados a órgãos da Administração Pública Direta e Indireta Federal, Estadual e Municipal e a suas fundações públicas”.
Na sequência, alguns Estados publicaram leis prevendo a isenção de ICMS nas operações com absorventes íntimos femininos destinados a órgãos da administração pública direta e indireta. Foi o caso do Estado do Rio de Janeiro [3], que, indo além, também publicou a Lei nº 9.404/2021 autorizando o Poder Executivo “a instituir a distribuição gratuita de absorventes higiênicos femininos nas escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro, reconhecendo-os como item de necessidade básica para a saúde e higiene feminina”.
Ou seja, o ente não apenas tratou da desoneração tributária de produto essencial para a saúde e higiene feminina, mas igualmente adotou uma medida social indispensável à garantia de acesso da população feminina ao produto, maximizando a efetividade do incentivo fiscal e a promoção de direitos fundamentais [4].
A ação social se faz indispensável pois, ao contrário do que se possa imaginar, não necessariamente a desoneração do ICMS na saída do produto representa redução efetiva de custos/despesas pelo vendedor, uma vez que tal tributo é não-cumulativo. Isso porque, a redução/isenção do ICMS na saída pode não representar redução do preço do produto vendido à consumidora.
Em que pese este seja um assunto de extrema importância e associado ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, bem como intrínseco às garantias constitucionais de acesso à educação e ao mercado de trabalho pelas mulheres, o debate sobre tributação e igualdade de gênero não se resume à discussão sobre absorventes íntimos.
Na esfera judicial brasileira, à semelhança do caso que desafiou a então advogada Ruth Bader Ginsburg perante a Suprema Corte dos Estados Unidos, os embates que trazem o dueto tributação e gênero para o centro das discussões judiciais no Brasil podem ser encontrados em questões como a da inconstitucionalidade da contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade (RE 576.967) e, mais recentemente, nos debates acerca da constitucionalidade da tributação pelo imposto de renda da pessoa física (“IR”) sobre as quantias recebidas a título de pensão alimentícia[5] (ADI 5.422, aguardando julgamento pelo Plenário físico do STF, após retirada do ambiente virtual).
Com relação a esse último tema, de acordo com o ordenamento jurídico hoje em vigor, ao alimentante é concedido o direito de deduzir, para fins de IR, as quantias pagas de pensão alimentícia, ao passo que compete ao alimentando (ou seu responsável) arcar com o ônus deste tributo.
No entanto, considerando a realidade brasileira, onde as pensões alimentícias são pagas, em sua maioria, pelos homens e recebidas por mulheres, tal prática acaba refletindo indiretamente na discussão sobre tributação e desigualdade de gênero.
Nesta esteira, vale mencionar o levantamento realizado e divulgado pela Receita Federal relativo aos Grandes Números das declarações de pessoas físicas 2021, referentes ao ano calendário de 2020[6]. Com base nesse estudo, verifica-se a enorme disparidade existente entre as quantias pagas pelos homens a título de pensão alimentícia – R$15,28 bilhões – e aquelas pagas pelas mulheres – R$390 milhões.
Diante dos fatos e dos números, surgem alguns questionamentos: A lei que determina a tributação das quantias recebidas a título de pensão alimentícia é compatível com o princípio constitucional da isonomia? Faz sentido permitir a dedução integral, para fins de IR, pelo alimentante e, por outro lado, impor ao alimentado – responsável pela guarda do menor (em sua maioria mulheres) – limite para a dedução das despesas?[7]
A melhor resposta a estas perguntas pode ser encontrada nas sábias palavras do ministro Roberto Barroso, quando do julgamento virtual da ADI 5.422. Em seu voto, o ministro relembra que, na realidade atual, a tributação acaba penalizando ainda mais as mulheres, que já se veem com a tarefa de criar, assistir e educar os filhos [8].
As questões tributárias ainda não param por aí. O estudo “Gênero, Tributação e Igualdade nos países em desenvolvimento”, elaborado e divulgado pela ONU Mulher[9], identifica inúmeros tratamentos tributários que acabam por acentuar as desigualdades sociais e de gênero, bem como faz recomendações a serem avaliadas e discutidas para fins de implementação de política fiscal justa e coerente.
Tributação e gênero, ao lado da desigualdade social, não é uma pauta a ser menosprezada. Ao contrário do que muitos pensam, ela está intimamente ligada ao que há de mais moderno quando o assunto são formas por meio das quais uma nação concretizará o desenvolvimento econômico. Ela se liga, portanto, ao avanço e à prosperidade de um país. Não é por acaso que o Fórum sobre Administração Tributária da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) criou, em 2019, a Gender Balance Network [10].
No Brasil, a continuidade dos debates em torno da retomada de crescimento, incluindo questões como a da reforma tributária, não deve passar ao largo de temas ligados à desigualdade de gênero. A tributação, como instrumento que pode trazer consigo estímulos e desencadear os famosos nudges[11] pela via das políticas públicas, é uma das ferramentas cruciais para a realidade que já é essa jornada. Se quisermos alcançar o desenvolvimento, devemos estar prontos para não nos distanciarmos dela.
[1] Vide estudo sobre reforma tributária e igualdade de gênero realizado pelo grupo de estudo em que se sugere como medida de reforma tributária a desoneração de tributos federais sobre absorventes, fraldas infantis e geriátricas, anticoncepcionais e medicação hormonal por considerar itens essenciais para o público feminino. https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/reforma_e_genero_-_final_1.pdf
[2] Vide Lei nº 14.214/2021, que cria o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Veja-se, ainda, importante estudo realizado pela Unicef, contendo dados estatísticos a respeito do tema: https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf
[3] Lei 9.508/2021
[4] Com base nas lições de Ana Paula de Barcellos, são exemplos que contam com o auxílio de normas postas e implementadas, sendo necessária a vigilância do “percurso da norma-realidade”, isto é, se os resultados esperados estão sendo produzidos. Nesse sentido: BARCELLOS, Ana Paula. POLÍTICAS PÚBLICAS E O DEVER DE MONITORAMENTO: LEVANDO OS DIREITOS A SÉRIO. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, p. 251-165, 2018.
[5] A discussão sobre o tema começa a partir da definição de “renda” prevista na Constituição Federal e no Código Tributário Nacional. Uma vez que é impensável, pelo caráter de subsistência inerente à pensão alimentícia, enquadrar a pensão alimentícia no conceito de “produto do capital ou trabalho” ou de “proventos que representem acréscimo patrimonial”.
[6] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/11-08-2014-grandes-numeros-dirpf/capa_indice_tabelas_ac2020_v2.pdf
[7] Vide artigo da Professora Pilar Coutinho https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2022/02/por-um-tributario-menos-cringe-com-direito-a-sao-valentim.ghtml
[8] Conforme consta do voto do ministro Roberto Barroso: “Na maioria dos casos, após a dissolução do vínculo conjugal, a guarda dos filhos menores é concedida à mãe. A incidência do imposto de renda sobre pensão alimentícia acaba por afrontar a igualdade de gênero, visto que penaliza ainda mais as mulheres. Além de criar, assistir e educar os filhos, elas ainda devem arcar com ônus tributários dos valores recebidos a título de alimentos, os quais foram fixados justamente para atender às necessidades básicas da criança ou do adolescente.”
[9] https://www2.unwomen.org/-/media/files/un%20women/grb/resources/geder-tax-report-fin-web.pdf?vs=3508
[10] https://www.oecd.org/tax/forum-on-tax-administration/about/gender-balance-network/
[11] THALER, Richard H. SUNSTEIN, Cass. Nudge: Improving decisions about health, wealth, and happiness. New Haven: Yale University Press, 2008.
Fonte: JOTA