Jogos de azar e cassinos no Brasil

Mais de 100 anos entre liberações e proibições. Este artigo é o primeiro de uma série sobre jogos de azar e cassinos no Brasil, tema repleto de opiniões antagônicas (por vezes, contraditórias) e que acirra debates nos âmbitos jurídico, econômico, político-social e religioso. Além de tratar de aspectos históricos neste artigo, a série abordará a regulação de jogos de azar em outros países e os projetos de lei em andamento para regulamentação da exploração de tais jogos no Brasil.

De acordo com a Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941), o jogo de azar é aquele em que se depende exclusiva ou principalmente da sorte (e.g. bingo, jogo do bicho, roleta). Atualmente, o jogo de azar é proibido[1] no Brasil, assim como a exploração de cassinos, tradicional local onde são praticados os mais diversos tipos de jogos de azar. Também são considerados jogos ilícitos (i) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou local autorizado e (ii) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva[2].

Segundo a doutrina brasileira, além dos jogos de azar propriamente ditos, existem outras duas categorias em que os jogos podem se enquadrar: os lícitos e os tolerados, sendo lícitos os expressamente permitidos em lei (e.g. loterias) e os tolerados aqueles que não são expressamente permitidos, nem proibidos (e.g. pôquer).

O Brasil já viveu momentos em que a exploração dos jogos de azar em cassinos pela iniciativa privada era permitida, ainda que sua aceitação não tenha sido unânime.

A primeira liberação para abertura de cassinos no Brasil ocorreu em 1920, quando o então presidente Epitácio Pessoa, por meio do Decreto nº 3.987, permitiu que os jogos de azar fossem explorados em clubes e cassinos localizados em estâncias balneárias, climáticas e de águas mediante a concessão de autorização temporária e sujeição a imposto de 15%[3].

Na época, a atividade revestia-se de alto grau de precariedade porque a autorização poderia ser cassada por mera liberalidade do poder público ou quando solicitado pelo Conselho Municipal (denominação dada ao órgão do Legislativo local da cidade do Rio de Janeiro à época) sem que fosse devida qualquer indenização ao particular. O efeito prático disso foi instabilidade, resultando em frequente inauguração e fechamento de cassinos, fosse pela própria União ou pelos estados-membros, no exercício de sua autonomia.

Foi na década de 1930 até meados da década de 1940, com Getúlio Vargas à frente da nação, que os jogos de azar tiveram sua época de ouro, sendo explorados em conjunto com grandes e luxuosos espetáculos que contavam com a presença de inúmeras personalidades políticas e artísticas do mundo inteiro. Nesse período mais de 70 cassinos[4] que empregavam aproximadamente 55 mil trabalhadores[5] chegaram a funcionar em todo o país.

Devido ao grande sucesso entre as classes mais privilegiadas, Vargas editou o Decreto-Lei nº 241, em 1938, dispondo sobre o funcionamento, mediante pagamento de outorga, e impostos dos chamados cassinos-balneários, bem como da destinação de parte dos impostos arrecadados para instituições de assistência social e fomento do turismo, sem, contudo, prever expressamente o caráter precário da licença, o que resultou em maior segurança àqueles que exploravam a atividade.

Não obstante isso, em 1941, também durante o governo Vargas, foi publicada a Lei de Contravenções Penais, ainda vigente, que proibiu os jogos de azar, determinando em seu artigo 50 que constitui contravenção penal “estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele”.

A edição da referida lei, entretanto, não significou a extinção imediata dos cassinos no país. Diante da pressão exercida pelos proprietários de cassinos à época, em outubro de 1942 houve a publicação do Decreto-Lei nº 4.866[6], excluindo do rol de incidência da Lei de Contravenções Penais os cassinos licenciados com base no Decreto-Lei nº 241/1938. Finalmente, em dezembro de 1942 foi editado o Decreto-Lei nº 5.089, que alterou o Decreto-Lei nº 241/1938, passando a prever que: “Todas as licenças e concessões dadas com fundamento nesta lei serão a título precário, podendo ser cassadas a qualquer momento”.

Dois anos mais tarde, Vargas regulamentou o serviço de loterias federais e estaduais por meio do Decreto-Lei nº 6.259[7]. Em 1967, por meio do Decreto-Lei nº 204, a criação de loterias pelos estados foi proibida. Somente após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021, proferida no julgamento das ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 492 e 493, foi declarada a inconstitucionalidade da proibição de criação de loterias pelos estados e reconhecida a possibilidade de concessão, desde que mediante licitação, o que desencadeou a publicação de diversas legislações estaduais e licitações para concessão do serviço.

Apesar de permitido até então, como dito no início, os jogos de azar não eram unanimidade na sociedade. Enquanto as elites e turistas nacionais e internacionais aproveitavam o ambiente proporcionado pelos cassinos, a igreja e os extratos mais conservadores eram contrários. Os argumentos sustentados por estes últimos à época praticamente não se alteraram ao longo do último século, sendo os mesmos utilizados por quem atualmente critica eventual retorno do jogo de azar à legalidade, que incluem: violação da moral e bons costumes[8], meio facilitador para lavagem de dinheiro e risco de aumento do vício em jogo.

Recentemente, ganharam evidência no cenário nacional os jogos de bingo e do bicho (ambos considerados jogos de azar). Este último, expressamente proibido pelo artigo 58 da Lei de Contravenções Penais, é amplamente praticado em casas clandestinas.

O jogo de bingo, por sua vez, retornou à legalidade no ano de 1993, quando durante o governo de Itamar Franco foi publicada a Lei nº 8.672 (“Lei Zico”), regulamentada pelo Decreto nº 981/1993, permitindo que o jogo fosse promovido por entidade de direção e de prática desportiva para obtenção de recursos necessários ao seu fomento. Mesmo como a revogação da Lei Zico pela Lei nº 9.615/1998 (“Lei Pelé”), o jogo de bingo continuou sendo expressamente permitido e regulamentado no país até o advento da Lei nº 9.981/2000 (“Lei Maguito”), sendo sua exploração reestabelecida em seguida pela Medida Provisória nº 2.216-37/2001, sob a responsabilidade direta ou indireta da Caixa Econômica Federal. Todavia, em 2004, por causa de escândalo envolvendo assessor do ministro da Casa Civil, foi publicada a Medida Provisória nº 168/2004 declarando nulas e sem efeito todas as licenças, permissões, concessões ou autorizações para exploração do jogo de bingo. Apesar disso, não é incomum sua exploração de forma clandestina.

Como a Lei de Contravenções Penais é aplicável somente às práticas em território nacional, atualmente, é possível que brasileiros realizem apostas em ambientes online hospedados em servidores localizados em outros países, que apresentam os mais diversos tipos de jogos de azar, incluindo bingo, roletas, apostas esportivas e, até mesmo, jogo do bicho. Ambientes frequentemente utilizados pelo público brasileiro como o Sportingbet, Bet365 e Betano têm licença expedida por autoridades estrangeiras, por exemplo.

Especificamente com relação às apostas esportivas[9], foi publicada a Lei nº 13.756 permitindo sua exploração no Brasil mediante autorização ou concessão outorgada pelo Ministério da Fazenda. Apesar disso, na prática, ainda não é possível a exploração da atividade porque o Ministério da Fazenda não regulamentou os procedimentos para a obtenção da outorga e exercício dessa modalidade de aposta[10]. Frente ao vazio regulatório existente, e tendo em vista o princípio da territorialidade, não há impedimento à exploração e à publicidade de apostas esportivas nos ambientes online hospedados fora do país.

Fato é, portanto, que a prática desafia a ilegalidade do jogo de azar no Brasil, uma vez que a exploração e a aposta clandestina e/ou não regulamentada e devidamente fiscalizada pelo poder público acabam por deixar de gerar benefícios para os cofres públicos, e, em contrapartida, para a sociedade.

Evidente que não se espera que a liberação seja de baixa complexidade e de fácil burla. Pelo contrário, a regulamentação deve prever mecanismos para coibir a lavagem de dinheiro pelo crime organizado e a sonegação de impostos e, não menos importante, proteger a saúde dos apostadores.

Como se percebe da análise do arcabouço legal existente nos países com regulamentação mais madura em relação à exploração e o controle regulatório dos jogos de azar — tema do próximo artigo —, trilhar esse caminho parece ser mais aderente à realidade do Brasil, podendo trazer, inclusive, benefícios como geração de empregos, fomento ao turismo e aumento da arrecadação.

[1] O Supremo Tribunal Federal pautou para 7 de abril deste ano o julgamento do Recurso Extraordinário n.º 966.177, com repercussão geral, que irá decidir sobre a tipicidade do estabelecimento e exploração de jogos de azar.

[2] As apostas esportivas por quota fixa (quando o prêmio é conhecido no momento da aposta) foram autorizadas no Brasil em 2018, nos termos da Lei Federal n.º 13.756.

[3] Art. 14. Aos clubs e casinos das estações balnearias thermaes e climatericas poderá ser concedida autorização temporaria para a realização dos jogos de azar em locaes proprios o separados, mediante as seguintes condições:

§ 1º Prévia licença da autoridade respectiva.

§ 2º Na autorização deverão ser discriminados o prazo da concessão, a natureza dos jogos de azar permittidos, as medidas de localização por parte dos agentes da autoridade, condições de admissão nas salas de jogo, as horas de abertura e de encerramento, a taxa de 15 % devida e a maneira de cobral-a.

§ 3º Nas salas do jogo só poderão ter entrada pessoas maiores.

§ 4º A autorização poderá ser cassada, em caso de inobservancia das clausulas preestabelecidas, a pedido justificado do Conselho Municipal, ou quando assim o entender o poder publico, sem que aos concessionarios assista direito a qualquer indemnização.

§ 5º Cada club ou casino que obtiver a autorização, seja ou não organizado em sociedade, terá como responsaveis um gerente e um director.

§ 6º Uma vez licenciados e sujeitos á taxa de 15% os clubs e casinos poderão funccionar sem que incidam nas disposições das leis penaes relativas ao jogo.

[4] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/02/12/por-201cmoral-e-bons-costumes201d-ha-70-anos-dutra-decretava-fim-dos-cassinos-no-brasil

[5] https://www12.senado.leg.br/radio/1/reportagem-especial/2016/07/01/quando-as-roletas-pararam-de-girar

[6] Artigo único. O disposto no art. 50 do Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, não se aplica aos estabelecimentos licenciados na forma do Decreto-Lei nº 241, de 4 de fevereiro de 1938.

[7] Ainda em vigor com alterações.

[8] Inclusive, foi em nome da “moral e bons costumes” que o Presidente Eurico Gaspar Dutra decidiu proibir a exploração de jogos de azar no país por meio do Decreto-Lei n.º 9.215, de 30 de abril de 1946: “Considerando que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal; Considerando que a legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a êsse fim; Considerando que a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro e contrária à prática e à exploração e jogos de azar; Considerando que, das exceções abertas à lei geral, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes; Considerando que as licenças e concessões para a prática e exploração de jogos de azar na Capital Federal e nas estâncias hidroterápicas, balneárias ou climáticas foram dadas a título precário, podendo ser cassadas a qualquer momento.”

[9] A aposta esportiva, denominada pela legislação de aposta de quota fixa, é modalidade lotérica relativa a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico (cf. art. 29, §1º, da Lei Federal n.º 13.756/2018).

[10] O prazo para que o Ministério da Fazenda edite regulamentação sobre as apostas esportivas se encerrará em dezembro de 2022. Até o momento, a Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria (“Secap”) realizou três consultas públicas para recolher contribuições a respeito da regulamentação das apostas de quota fixa.

Fonte: GREGORY BARBOSA BARBOSA e VICTOR NOGUEIRA

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