Contratos de namoro, multas por infidelidade e outros exemplos. Fisco e contribuinte: vai dar namoro?
Vive-se uma crescente contratualização das relações humanas. O contrato, como instrumento jurídico, tem assumido importância crescente em campos a que era tradicionalmente estranho, na esteira de uma progressiva valorização do consenso na aplicação do Direito.
É o que se vê, por exemplo, no campo do Direito Processual, com a categoria dos negócios jurídicos processuais; no Direito Penal, com os acordos de leniência e de colaboração premiada; no Direito das Sucessões, com os instrumentos contratuais de planejamento sucessório, e assim por diante1. O Direito de Família não tem se mantido imune a esse processo. Muito pelo contrário: constitui exemplo privilegiado das potencialidades desse novo fenômeno, bem como das complexidades inerentes à sua delimitação.
A legislação brasileira é expressa ao reconhecer aos cônjuges amplo espaço de
liberdade na determinação dos efeitos patrimoniais do casamento. Nessa direção, o artigo 1.639 do Código Civil afirma que “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” – regra que se aplica também às diferentes formas de união estável. Podem, assim, cônjuges ou companheiros adotar qualquer dos regimes de bens previstos em lei ou, ainda, estipular um regime próprio, atípico. A atenção da doutrina mais atual tem se voltado, no entanto, para a dimensão existencial da relação familiar, na qual predomina, tradicionalmente, a concepção de que as normas legais pertinentes seriam de ordem pública, o que suprimiria qualquer espaço para contratações vinculantes desta natureza com base no exercício da autonomia privada.
No common law, usualmente mais deferente à liberdade de contratar, pululam exemplos rumorosos deste tipo de arranjo. Por exemplo, o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, obrigou-se expressamente perante sua mulher a ter um encontro fora de casa, de duração mínima de 100 minutos, uma vez por semana2. Há exemplos, ainda, de disposições que estabelecem divisões de funções em relação aos cuidados com os filhos ou com animais domésticos, entre outras tantas possibilidades. Tais cláusulas seriam válidas no Brasil? Embora a resposta tradicional seja negativa, cresce entre nós a aceitação deste tipo de pacto à luz da tutela constitucional da dignidade da pessoa humana, que abarca a liberdade para regular suas próprias relações (Constituição, art. 1º, III).
Um ponto especialmente controvertido diz respeito à possibilidade de se estabelecer, no âmbito do pacto antenupcial ou do contrato de convivência, cláusulas penais em relação ao inadimplemento de deveres conjugais (legais ou convencionais). Os exemplos estrangeiros sobram em criatividade: vão desde o estabelecimento de multas por infidelidade – é conhecido o pacto antenupcial entre os atores Michael Douglas e Catherine Zeta-Jones, que estabelece, segundo os jornais, o pagamento de US$ 5 milhões para Zeta-Jones caso ela seja traída3 – até a previsão de multas escalonadas, que vão crescendo a cada ano de duração da relação, para a hipótese de separação – os também atores Tom Cruise e Katie Holmes haviam pactuado, segundo a mídia, o pagamento de US$ 3 milhões por ano de casamento e se separaram cinco anos após o matrimônio4.
No Brasil, causa preocupação a possibilidade de obrigações pecuniárias acabarem por refrear um real exercício da liberdade individual na hipótese de ruptura das relações afetivas. Na VIII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, foi aprovado o Enunciado 635, segundo o qual “o pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar.” A maior parte da doutrina brasileira continua considerando inválidas as disposições contratuais que afastam deveres conjugais previstos no artigo 1.566 do Código Civil5 – deveres legais de fidelidade, coabitação, mútua assistência, cuidado dos filhos e respeito mútuo –, tidos por muitos autores como normas de ordem pública. A doutrina mais atenta, porém, tem defendido diferenciação entre os dois primeiros deveres, relativos à “forma pela qual o casal elegeu seu modo de viver para alcançar a felicidade, segundo os próprios padrões”, e os três últimos deveres, que “têm sua justificativa na solidariedade familiar”6. Assim, a regulação e até o afastamento dos dois primeiros deveres recairiam dentro da esfera de liberdade dos cônjuges.
O mais importante é que se investigue, em cada caso concreto, se a incidência da cláusula penal importa uma forma de coação ou de violação à dignidade dos envolvidos. Este tipo de situação pode ser verificada, por exemplo, na multa estabelecida no pacto antenupcial celebrado, em 2009, pela cantora Jessica Simpson e pelo jogador de futebol americano Tony Romo: Jessica deveria pagar uma indenização ao marido caso seu próprio peso aumentasse ao longo da vida conjugal7. O caso levantou questões relacionadas à objetificação da mulher e à discriminação de gênero, vedada no Brasil por norma constitucional (art. 3º, IV)8.
Um ponto que merece, por fim, atenção é aquele que diz respeito à celebração dos chamados contratos de namoro, que tem se tornado cada vez mais frequente9. Os contratos de namoro são negócios jurídicos por meio dos quais as partes afastam a qualificação do seu relacionamento afetivo como união estável10. Os casais costumam recorrer a este tipo de ajuste pelo receio de que sua relação afetiva venha a ser qualificada como união estável em eventual contenda futura, o que poderia gerar o reconhecimento de direitos e obrigações que não seriam desejados pelo casal. Nesse contexto, a opção por um contrato de namoro traria segurança e afastaria potenciais conflitos futuros. Não deixa de ser algo irônico, contudo, que o contrato de namoro seja, ele mesmo, fonte de profundas incertezas. Isso porque, embora parte da doutrina festeje a nova espécie contratual como um instituto que prestigia a autonomia privada no âmbito familiar11, muitos autores ainda suscitam dúvidas acerca da validade do acordo12.
É fora de dúvida que o contrato de namoro produz plenos efeitos no tocante à situação pretérita – em relação à qual as próprias partes estão reconhecendo que os requisitos caracterizadores da união estável, incluindo o “objetivo de constituição de família”13, não se encontravam presentes. O que se discute é se o afastamento da configuração da união estável valeria para o futuro, mesmo que dados da realidade viessem a dizer o contrário. Embora o objetivo de constituição de família pertença, naturalmente, ao campo das intenções de cada um dos envolvidos, também é certo que, em caso de disputas acerca deste tema, não havendo consenso entre os litigantes, os tribunais têm buscado elementos objetivos que permitam a identificação deste propósito comum.
O melhor caminho a ser trilhado nesta matéria parece se afastar dos dois extremos que tem polarizado o debate sobre o tema. Longe de representar um negócio jurídico capaz de suprimir a eficácia de uma união estável, se existente, o contrato de namoro deve ser analisado como um elemento de prova no tocante à ausência do “objetivo de constituição de família”. A existência de um contrato de namoro não implica, por assim dizer, um afastamento absoluto da configuração de união estável, mas tem peso importante na avaliação de todas as circunstâncias fáticas apontadas pelas partes a fim de facultar ao magistrado a visão mais completa possível do relacionamento, contribuindo para determinar se aquele vínculo configurava ou não relação familiar.
São, enfim, numerosas as potencialidades do instrumento contratual nas relações de família. A tradição altamente intervencionista do Direito neste campo vai cedendo passagem à ampliação dos espaços de exercício da autonomia privada. Deve-se, todavia, ter atenção e cautela para que o afã libertário não acabe suscitando o risco oposto, consubstanciado no afastamento de toda e qualquer apreciação jurídica do conteúdo do pacto, o que pode acabar acobertando situações de iniquidade ou discriminação. O delicado equilíbrio entre liberdade e solidariedade constitui o grande desafio do Direito de Família contemporâneo.
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[1] Seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2020, pp. 18-19.
[2] Informações extraídas da reportagem “Mark Zuckerberg’s Wife’s Strict 100 Minute Rule and Odd Request While Giving Birth”, publicada em 5.10.2021 pelo jornal britânico Mirror.
[3] Informações extraídas da reportagem “Veja as regras mais polêmicas dos acordos pré-nupciais dos famosos”, publicada em 21.7.2014, no jornal Extra.
[4] “Katie’s $15Million and a $35M Mansion: What Holmes Stands to Gain from her Ex-husband… and how she’s ‘Seeking Much More’”, publicada em 30.6.2012, no portal Daily Mail.
[5] “Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e consideração mútuos.”
[6] Ana Carla Harmatiuk Matos e Ana Carolina Brochado Teixeira, Pacto Antenupcial na Hermenêutica Civil-Constitucional, in Joyceane Bezerra de Menezes, Maria Cristina De Cicco e Francisco Luciano Lima Rodrigues (coords.), Direito Civil na Legalidade Constitucional: algumas aplicações, São Paulo: Foco, 2021, p. 35.
[7] A notícia é de que a cada pound a mais da cantora o marido embolsaria US$ 500.000,00, conforme reportagem “20 Crazy Celebrity Prenups That Will Make You Rethink Your Marriage”, publicada em 20.3.2020, pelo portal Radar: Fresh Intelligence.
[8] “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…) IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
[9] “Busca por contratos de namoro aumenta durante a pandemia”, publicada em 22.7.2020, pelo Valor Econômico.
[10] O saudoso Zeno Veloso assim define o contrato de namoro: “uma declaração bilateral em que pessoas maiores, capazes, de boa-fé, com liberdade, sem pressões, coações ou induzimento, confessam que estão envolvidas num relacionamento amoroso, que se esgota nisso mesmo, sem nenhuma intenção de constituir família, sem o objetivo de estabelecer uma comunhão de vida, sem a finalidade de criar uma entidade familiar, e esse namoro, por si só, não tem qualquer efeito de ordem patrimonial ou conteúdo econômico.” (A União Estável e o Chamado Namoro Qualificado no Brasil, in Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, Porto Alegre, v. 3, n. 18, maio/jun. 2017).
[11] Nessa direção, ver a obra de Marília Pedroso Xavier, Contrato de Namoro: Amor Líquido e Direito de Família Mínimo, Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 114: “Embora não haja consenso sobre o que é família no direito brasileiro, conceito cada vez mais plural, nota-se que a pactuação de um contrato de namoro seria suficiente para tornar claro o intento de não formar uma entidade familiar e, portanto, afastar a configuração de união estável. Isso porque o contrato de namoro impede que se complete o suporte fático da união estável, uma vez que atinge justamente seu elemento volitivo: declara-se expressamente que não se quer constituir família.”
[12] De acordo com Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 194: “esse tipo de avença, com o intuito de prevenir responsabilidades, não dispõe de nenhum valor, a não ser o de acabar monetarizando singela relação afetiva.”
[13] “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
Fonte: Jota por ANDERSON SCHREIBER