Felipe Daud, gerente de políticas públicas do iFood na América Latina, coordena curso que fomenta diversidade no setor de RIG. É principio da nova economia desenvolver soluções, geralmente tecnológicas, para demandas de consumo pouco atendidas pelos negócios tradicionais. A depender do setor, isso significa ora explorar um mercado novo e ainda sem regulamentação específica ora entrar com uma nova abordagem em um setor bem regrado. Ambas os espectros desafiam negócios inovadores a refinar estratégias de relações institucionais e governamentais – área que tem sido resumida pela sigla RIG.
A presença dessa área tem crescido no mercado como um todo – com destaque para a presença das startups. Anuário setorial, organizado pela Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (ABRIG) e pelo Instituto de Relações Governamentais, deu indícios dessa tendência. Em 2020, a pesquisa obteve 20% a mais de respondentes profissionais do setor e, dentre as empresas participantes, a fatia de startups passou de 5,9% para 9,4%.
“Há menos de dez anos, o mercado era muito menor, justamente porque, mais recentemente, as empresas mais disruptivas e inovadoras perceberam a importância de profissionais de RIG. Como elas têm tido crescimento exponencial, acabam puxando o mercado”, afirma Felipe Taufik Daud, gerente de políticas públicas do iFood para América Latina e professor de relações institucionais e governamentais na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
O setor está mudando e uma das preocupações atuais é que essa nova geração de profissionais da área seja também mais diversa – o que é especialmente relevante em uma área que interage diretamente com a sociedade. Daud coordena o curso de formação de lideranças para a área no Mackenzie em que, além das vagas tradicionais, foram disponibilizadas dez bolsas focadas na população negra, LGBTQIA+ e com formação básica na educação pública.
Os inscritos selecionados para obter bolsas, financiadas por doadores, no curso de coordenado por Daud serão comunicados na sexta-feira (17/9). As inscrições regulares estão abertas até a próxima segunda-feira (20/9). A formação executiva tem parceria com o JOTA PRO, então os alunos terão acesso como assinantes do serviço de informação para tomadores de decisão do JOTA.
Nesta entrevista, Daud fala sobre as transformações do mercado, como fazer relações institucionais e governamentais na nova economia e o que se quer da próxima safra de profissionais engajados no setor.
RIG na nova economia
“O objetivo do profissional de RIG é sempre obter e manter a licença social e regulatória da empresa para operar. Em um setor tradicional, que não depende uma autorização do poder público para operar ou não tem uma ameaça regulatória, a atuação do profissional é muito mais voltada para a manutenção dessa licença. Já na nova economia se busca obtê-la.
Quando trabalhei em uma multinacional de patinetes elétricos, o desafio era que sem autorização da prefeitura não poderia haver patinetes na rua. Meu objetivo era conseguir essa autorização, então toda a minha abordagem era muito diferente de quanto trabalhava em setor já licenciado, de bebidas, em que não precisava abrir um mercado.
Então as discussões de um profissional de RIG na nova economia são muito mais relacionadas ao negócio em si, por talvez ainda serem empresas em formação e buscando seu espaço. Ele passa a ser alguém que eu chamaria de pro business, alinhado com o CEO e com o vice-presidente financeiro. Ele vai permitir que a empresa obtenha receita. Se trabalha no sentido não só de ativamente buscar permissão, mas também evitar uma proibição que pode ser fatal para o negócio”.
Um novo mercado é aberto
“A história da Uber é bem conhecida, está registrada no livro The Fixer [Minhas aventuras salvando startups da morte pela política, de Bradley Tusk, sem edição em português]. Eles tinham a tese de que primeiro você faz e depois pede desculpas. Isso não é possível em todos os setores. É recomendável? Precisa ver.
Muitas empresas de tecnologia e economia compartilhada surgem dentro de um ambiente em que não há regulação a favor ou contra. Não há problema em começar assim, porque provavelmente há argumentos jurídicos sobre a liberdade econômica, mas a regulação específica é criada ao longo do tempo. No mínimo, há leis que dão respaldo para inovar.
Entrar em um setor já regulado com disrupção é complexo, porque se tem toda a articulação dos incumbentes e do setor como está com os reguladores. Nesse aspecto, uma inovação importante é o sandbox regulatório, presente no Marco Legal das Startups, que permite testar regulações por períodos para que se permita a inovação ao mesmo tempo em que se resguarda tudo o que já foi construído durante anos. Agora em um setor ainda não regulado, a discussão é menos técnica e vai ser tema de debate público”.
Construindo uma nova regulação
“Muitas vezes o que não se tem é uma legislação no Brasil. No episódio dos patinetes, não havia qualquer cidade brasileira que tivesse feito essa regulação, mas tínhamos muitos exemplos internacionais e os problemas costumavam ser parecidos. Essas discussões ao redor do mundo eram consolidadas com perspectiva comparada. Nessa etapa, se trabalha muito por analogia, como uma regulação de um setor primo para estabelecer balizas sobre o que será assunto na regulação.
A partir disso, é possível começar a formular o que seria o ideal regulatório para o seu setor. E com a pergunta: ‘como o que estamos colocando para a sociedade em termos de serviços ou produtos resolve problemas públicos?’ E então se começa a formular sua narrativa e sua estratégia de ação.
O resultado final não vai nem ser a versão ideal para sua própria empresa, que vai ter que se ver com algum nível de regulação, nem para o governo. O que fazemos é buscar esse meio do caminho, que não inviabilize nenhum negócio e traga benefício para a sociedade”.
Reforço de narrativas e reputação
“Quando falo de garantir, manter e melhorar licença social eu estou pensando na visão da sociedade e o senso comum social sobre o negócio, a empresa e o setor. Faz parte das tarefas do profissional de RIG buscar incrementar sua licença social e com a regulação. Mas, além disso, se pretende que o negócio seja bem visto pela sociedade, buscando parcerias para criar narrativas conectadas com objetivos maiores do que seu próprio negócio. E ganhos para todos, então investimentos em meio ambiente, cultura, em pautas de interesse coletivo fazem parte dessa estratégia.
A tarefa do profissional de RIG é também fomentar a criação de um legado. Ele tem esse objetivo institucional de trazer maior reputação para a empresa e para o setor por meio de ganhos para a sociedade”.
Relações com os Poderes
“Tradicionalmente, o profissional de RIG era muito focado no Executivo e no Legislativo. E o jurídico e o contencioso das empresas eram mais focados no Judiciário. Isso tem mudado. As duas áreas têm conversado cada vez mais para poder formular estratégias. Faz todo sentido para o profissional de RIG ter um olhar para o Judiciário, sabendo das particularidades desse Poder e as formas de interação, em que se tem os autos e também se pode ter formas de interlocução com os juízes.
É importante que se tenha essa visão. Juízes também são autoridades com poder decisório, legitimidade pra decidir. É importante que eles estejam sempre munidos das melhores informações. Alguns processos judiciais adotam alguns processos usados no legislativo, como audiência pública e outros momentos de oitiva da sociedade. Indo além disso, é sempre importante buscar a interlocução com o que está em debate no Judiciário”.
Mudanças no perfil profissional
“Em termos de diversidade, ainda observamos um mercado masculinizado, com gente dos principais centros urbanos, formação que varia um pouco entre jurídica e jornalística. Isso também está mudando. A área tem se tornado mais complexa nas empresas. Antes se resumia a relações governamentais e hoje envolve fazer estudo, relação com a academia, alguma interação com o Judiciário, interação com o ecossistema em que se está inserido ou fornecedores, clientes e sua cadeia produtiva.
Porém, um limitador, que faz o setor ser muito restrito a homens é que o profissional de RIG lida com autoridades. E comecei a ouvir de colegas mulheres muitos casos de assédio. Para mudar isso, precisa haver a segurança de que a companhia não vai tolerar assédio contra ninguém, nem feito por autoridades fora do espaço corporativo.
Temos uma nova geração de profissionais de RIG sendo formada. E essa nova geração quer um mercado que seja aberto, que não dependa de relacionamentos anteriores, de grandes nomes no setor público ou privado. E, sim, que as pessoas possam construir sua carreira nele, com a diversidade que se espera. Assim como outras carreiras, é uma das que está tendo uma revolução”.
Fonte: JOTA