Mesmo sem previsão em lei, Judiciário pode usar outros parâmetros para garantir a desconexão, dizem especialistas.
Quando a sala de estar, o quarto ou até a cozinha se tornam o escritório, desligar-se do trabalho pode ser um desafio. Deixar de responder mensagens eletrônicas e e-mails fora do horário de expediente, ou mesmo de atender ligações do empregador no período de descanso, incluindo as férias, está abarcado no chamado direito à desconexão. O amparo legal já é previsto em outros países e pode começar a ganhar maior importância também no Brasil, impulsionado pela pandemia da Covid-19, que exigiu a transição rápida de diversos setores para o trabalho em casa.
O cenário atual faz com que a maioria dos trabalhadores que trabalha em seu próprio domicílio tenha dificuldade para separar o ofício da vida pessoal. As empresas, por sua vez, enfrentam dificuldades para monitorar as condições de trabalho e o tempo de jornada. Esse conjunto de fatores somado com a saúde foi considerado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para indicar o direito à desconexão.
O relatório, publicado em janeiro, faz um chamamento para que governos, organizações de trabalhadores e sindicatos entrem em consenso para adotar medidas específicas que assegurem que o trabalhador em casa não seja “invisível” e garantam que os limites da privacidade sejam respeitados.
O direito à desconexão não é previsto expressamente na legislação trabalhista brasileira, mas é alvo de alguns projetos de lei em tramitação no Congresso. A discussão perpassa pelo teletrabalho. Inserida em lei em 2017 com a reforma trabalhista (Lei 13.467), a modalidade não prevê direito a hora extra sob entendimento de que a empresa não tem como controlar a jornada.
Mas a advogada trabalhista Ana Amélia Mascarenhas Camargos discorda. Ela afirma que as empresas podem adotar sistemas em que o login do funcionário sirva para esse controle de jornada. “As empresas devem analisar esse novo modelo de trabalho e impor limites, como proibir reuniões depois de determinado período e estimular empregados em cargos de confiança e que não têm controle de jornada a não extrapolarem a jornada”, aponta.
Casa virou escritório
A preocupação em equilibrar contratos flexíveis com o direito ao descanso ganhou novos contornos com a pandemia. Em março de 2020, o governo federal editou a Medida Provisória 927 com um capítulo exclusivo para disciplinar o teletrabalho. No parágrafo 5° do artigo 4° da MP era previsto que “o tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou coletivo”
A MP perdeu a vigência em julho, mas “o teletrabalho não está sem regulamentação específica”, segundo a ministra Maria Cristina Peduzzi, presidente do Tribunal Superior do Trabalho e do CSJT. “A CLT já conta, desde novembro de 2017, com normatização detalhada do teletrabalho no artigo 75-A, 75-B, 75-C, 75-D e 75-E. Então, existe substrato normativo para orientar o teletrabalho no Brasil, ainda que em termos um pouco diferentes do que a MP 927 previa”, explica.
Professor de Direito do Trabalho da FMU, Ricardo Calcini avalia que os contratos firmados com base na MP não serão afetados. Nos casos de contratos após a MP ter caducado, valerão as regras da CLT.
As pesquisadoras Grasiele Nascimento e Raíssa Creado, em artigo publicado na Revista Direito UFMS, chamaram a atenção para os problemas de saúde física e psíquica do trabalhador diante do novo modo de trabalho. A medida “pode corroborar para o aumento do estresse: em primeiro lugar, pela própria situação que a pandemia nos causa; em segundo lugar, pelo excesso de trabalho e impossibilidade de desconexão e descanso”.
A saúde dos funcionários foi um dos motivos alegados na última semana pelo banco americano Citigroup para promover adequações no teletrabalho. Em memorando, a presidente-executiva do banco, Jane Fraser, informou aos funcionários que serão proibidas reuniões internas por vídeo nas sextas-feiras, e videochamadas só serão agendadas com clientes.
A executiva pediu que os funcionários limitem o agendamento de reuniões fora do horário de trabalho. Curiosidade: Fraser também informou que, após a pandemia, a maioria dos funcionários deverá estar no escritório apenas três dias por semana, instituindo, assim, o home office como realidade.
Quem é que está em casa?
O perfil do trabalhador em home office é o seguinte: a maioria é mulher, de cor branca, com escolaridade de nível superior completo. Os dados são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que mostrou que mais de 8 milhões de pessoas estavam trabalhando em home office em setembro de 2020, o que representa 10,7% das 82,9 milhões de pessoas ocupadas e não afastadas naquele momento.
“Esse contingente é responsável por cerca de 20% da massa de rendimentos efetivamente recebida pelos trabalhadores ocupados no país em setembro, caracterizando uma espécie de setor de atividade econômica. Esse percentual é bastante diverso ao analisar cada UF, variando entre 37,6% no Distrito Federal e 7,6% no estado de Mato Grosso”, aponta o estudo recente.
Estudo do TST afirma que o aumento na produtividade dos teletrabalhadores é “muitas vezes associado à maior concentração propiciada pela eliminação de distrações e do estresse do trânsito, e pela simples flexibilização do horário de trabalho”. Como desvantagens há sobrecarga, interrupções do ambiente familiar e o aumento da energia elétrica, do consumo de água e do uso de equipamentos pessoais. A cartilha foi publicada em dezembro e traz dicas de saúde, ergonomia, tecnologia e histórico das normas sobre o tema.
Uma nota do Ministério Público do Trabalho (MPT) também colocou em alerta as empresas por orientar que trabalhadores em home office tenham o direito ao controle de jornada e horas extras. Reportagem do JOTA mostrou que o tema divide especialistas: uma parte interpretou que o texto está em desacordo com a CLT, e teme que a recomendação sirva de subsídio para eventuais fiscalizações. Outros entendem que o texto preenche lacunas deixadas pela reforma trabalhista.
Regulação no mundo
De 1919, quando a OIT fez sua primeira conferência e impôs limitação à jornada de trabalho, para cá, foram muitas as mudanças e flexibilizações adotadas para suprir as novas frentes que surgiram. O direito à desconexão é um desdobramento recente e já é adotado na França, Bélgica, Itália e Equador.
Na França, uma lei foi aprovada em 2016 estabelecendo a desconexão para trabalhadores em empresas com 50 ou mais funcionários. Lá é permitido que empregados e empregadores negociem como será o uso de e-mails e aplicativos de mensagens, como WhatsApp, fora do expediente.
Na Itália, há na lei a figura do “lavoro agile“. Conforme explica o professor Alberto Levi, da Universidade de Módena (Itália), no artigo “Il lavoro agile nel contesto del processo di destrutturazione della subordinazione”, trata-se de uma nova forma de prestação de serviços na qual o empregado pode escolher a hora e de onde trabalhará.
“O destaque é que a lei estabelece que o acordo individual firmado entre as partes deve individualizar os meios técnicos e organizacionais para garantir a fruição de tempo razoável de repouso”, afirma Renata Paschoalini Yamaki, pesquisadora do grupo de estudos da USP sobre Direito Contemporâneo do Trabalho e Seguridade Social (Getrab-USP).
Em artigo publicado no jornal The Times of India, duas pesquisadoras apontam Cingapura como um exemplo de abordagem para o home office, pois o país “enfatiza a importância de incentivar os empregadores a apoiar e se comprometer com condições de trabalho progressivas em consenso, o que vale a pena explorar, à medida que buscamos criar melhores condições de trabalho após a pandemia”.
Desfecho judicial
A percepção de especialistas é que o tema não foi muito questionado na Justiça neste primeiro ano de pandemia. Para Audrey Choucair Vaz, juíza auxiliar da 16ª Vara do Trabalho de Brasília, além de ser uma discussão nova, os trabalhadores provavelmente estão ponderando o alto risco de desemprego que um possível processo poderia acarretar. A magistrada afirma que o próprio acesso à Justiça diminuiu nesse período de emergência.
Germano Siqueira, juiz da 3ª Vara do Trabalho de Fortaleza, nunca julgou o tema da desconexão, mas entende que poderia haver um “gesto voluntário” de empregados, e principalmente de empregadores, para disciplinar a desconexão de forma correta e justa em convenções coletivas.
“Deixar tudo para que a Justiça analise não é a melhor medida. O Judiciário deve ficar como última tentativa, já que as partes têm outros caminhos legítimos para debate. O papel do sindicato para tratar de um tema como esse também é muito importante”, afirma.
Especialistas entendem que mesmo sem a previsão expressa em lei, o Judiciário pode usar os parâmetros constitucionais que limitam a jornada de trabalho ou que tratam do direito ao lazer para garantir a desconexão. A pesquisadora Renata Paschoalini Yamaki cita, por exemplo, que a reforma trabalhista passou a prever a ofensa ao direito ao lazer como uma das hipóteses de danos extrapatrimoniais (artigo 223-C da CLT).
Até agora, diz a pesquisadora, os tribunais têm reconhecido majoritariamente o direito à indenização por dano moral existencial “quando comprovado o efetivo prejuízo à convivência familiar, social ou à saúde do empregado em razão do trabalho exercido de forma extenuante”.
Segundo a ministra Maria Cristina Peduzzi, a legislação vigente prevê diferentes descansos, como intrajornada, interjornada, repouso semanal remunerado e férias. Para ela, todos esses descansos remunerados reconhecem o direito à desconexão de forma implícita.
“Caso o empregado tenha que ficar conectado 24 horas por dia ao celular ou a outro meio para receber ou aguardar ordens do empregador, o direito ao descanso fica comprometido. Nestes casos, a CLT prevê penalidades ao empregador que não concede esse período para o descanso’”, explica a ministra sobre o artigo 71, parágrafo 4º, da CLT.
Em números
Questionada sobre os números de casos julgados pelo Tribunal Superior sobre o tema, a ministra afirma que “apresentar uma estatística que traga apenas o número de decisões que utilizam a expressão ‘direito à desconexão’ pode gerar uma imprecisão do que se passa na realidade”. Isso porque a desconexão “engloba um conjunto de direitos trabalhistas previstos na CLT”.
“Na pesquisa de jurisprudência no âmbito do Eg. Tribunal Superior do Trabalho utilizando a expressão ‘direito à desconexão’ como termo de busca (que se restringe aos processos julgados ou pendentes de julgamento pelo TST, seja de forma originária, seja de forma recursal, em decisões monocráticas e colegiadas), o termo “direito à desconexão” retorna 240 julgados. É fundamental registrar que esse é um recorte feito em Instância Superior, não abarcando toda a Justiça do Trabalho”, diz Peduzzi.
Direito ao lazer prejudicado
Um dos principais precedentes sobre o tema data de 2017, quando a 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho condenou uma empresa por ofensa à desconexão. Para o colegiado, apesar de trabalhar em regime de sobreaviso, o empregado teve seu direito ao lazer prejudicado pelos plantões excessivos.
No caso analisado, um analista de suporte pediu indenização alegando ter ficado conectado mentalmente ao trabalho durante plantões que ocorriam por 14 dias seguidos. O funcionário narrou que ficava à disposição da empresa além do seu horário e chegou a trabalhar de madrugada. (AIRR-2058-43.2012.5.02.0464)
No TST, a questão do regime de sobreaviso está prevista na súmula 428. Pelo dispositivo, configura sobreaviso quando o empregado, “em período de descanso, for escalado para aguardar ser chamado por celular, a qualquer momento, para trabalhar”.
Por ora…
Para a advogada Ana Amélia Mascarenhas Camargos, os trabalhadores em home office estão começando a sentir falta do contato humano. “O convívio, seja em papos de corredor ou encontros para o almoço, ajuda a recompor a saúde mental do trabalhador. Trocar conhecimentos e ideias é essencial para o trabalho humano, e o teletrabalho falha nisso”, avalia. E como a tendência é que o trabalho em casa continue nos próximos anos, mesmo que não integralmente, o empregador deveria adotar medidas para enfrentar esta questão.
De acordo com Ricardo Calcini, os contratos de trabalho podem passar a prever detalhes da jornada à distância, além de definir quais atividades serão feitas no modelo remoto. “Os contratos também podem estabelecer se vai haver ou não a possibilidade de sistema híbrido (em que o trabalhador passa parte do tempo na empresa e outro em casa) e como será a gestão de custos relacionados à infraestrutura do teletrabalho”, diz.
Segundo a OIT, as inspeções do trabalho também precisam de treinamento específico no home office sobre como “cumprir o trabalho e proteções sociais”. “Além disso, todos os trabalhadores em casa devem se beneficiar da cobertura de seguridade social e ter acesso a treinamento que pode aumentar sua produtividade, oportunidades de emprego e capacidade de geração de renda”, aponta o relatório sobre o trabalho em casa (Working from Home: From invisibility do decent work, em inglês).
O estudo também destaca a importância de provisão de cuidados infantis como forma não só de aumentar a produtividade, como também de garantir o equilíbrio trabalho-família. “Empresas líderes no fornecimento em cadeia global também podem dar contribuição significativa implementando iniciativas privadas de compliance para melhorar as condições de trabalho em casa”, diz a OIT.
Crítico da cobrança de que empregados estejam disponíveis 24 horas por dia, o juiz Germano Siqueira afirma que “quando o mercado de trabalho se precariza, a questão de o trabalhador demandar a Justiça, em especial em relação à desconexão, fica mais fraca”. “O trabalho hiperconectado não pode servir para voltarmos aos tempos sombrios de jornadas excessivas, como já se exigiu de famílias inteiras o trabalho em fábricas por jornadas que ultrapassavam 16 horas”, diz.
Modelo legislativo
Na Câmara dos Deputados, o PL 4931/2020 regulamenta diversos pontos do teletrabalho, prevendo o direito à desconexão digital “a fim de garantir o respeito dos períodos de descanso e férias, bem como a intimidade pessoal e familiar do empregado”.
O PL 5581/2020 é mais incisivo em relação às regras do teletrabalho e tem determinação muito parecida com a legislação francesa, sugerindo assim que empresas com mais de 50 empregados deverão adotar “políticas internas educativas para orientação a seus empregados e gestores quanto à importância da desconexão e de boas práticas de etiqueta digital”.
Os dois projetos foram apensados a outro mais antigo e anterior à nova realidade imposta pela pandemia. De autoria do deputado Marco Maia (PT-RS), o PL 8.501/17 busca anular o teletrabalho. “Não há na nova lei qualquer garantia de direito à desconexão por parte do empregado, o que permite concluir que ele estará indefinidamente à disposição do empregador, sem que haja o consequente pagamento das horas extraordinárias”, justificou o parlamentar.
O direito à desconexão aparece ainda no PL 4.816/2020 como um “modelo de etiqueta digital” a ser adotado por alunos e funcionários de escolas de educação básica e superior que atuem no ensino remoto.
Já no Senado tramita o PL 4.044/2020, que proíbe o empregador de acionar um empregado em regime de teletrabalho fora do expediente, independente do meio usado para a comunicação. Pelo texto, acordos ou convenções coletivas poderão admitir exceções, no entanto, o tempo de trabalho contará como horas extraordinárias. Autor do projeto apresentado em agosto de 2020, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) disse ter se baseado no argumento do professor Jorge Luiz Souto Maior de que o avanço tecnológico “escraviza [o empregado] a estar conectado a todo momento”.
Fonte: JOTA