O reconhecimento do goodwill na aquisição de participação adicional

É necessária a identidade entre o goodwill contábil e fiscal?
Este é mais um texto da série sobre Direito Tributário e Contabilidade, que trata de um tema controvertido entre as disciplinas e que movimenta a vida do contribuinte e do Fisco. Como já mencionado no início da série, a ênfase da análise não recai sobre as conclusões alcançadas nesse ou naquele acórdão/pronunciamento fazendário, mas no método utilizado para transitar pelas situações reguladas pelos pronunciamentos contábeis, porém não disciplinadas na Lei n. 12.973/14. Retendo essa ideia, rememore-se que o último texto foi direcionado ao ganho experimentado na venda de participação societária sem perda do controle da entidade controlada. O objetivo, agora, é analisar o caminho inverso, ou seja, se é possível reconhecer o goodwill (para fins tributários) na aquisição de participações adicionais em entidade controlada. Trata-se de um dos pontos controvertidos nas reorganizações societárias[1].

Retomando as ideias do artigo anterior, há duas possíveis conclusões sobre a tributação do ganho de capital na alienação de bens do ativo não circulante classificados como investimentos (sem perda do controle). A primeira leitura seria no sentido de que não há que se oferecer os ganhos à tributação do IRPJ/CSLL. O fundamento, em linhas gerais, é que a operação (i) não é retratada no lucro líquido e (ii) não há norma específica que imponha a adição. A segunda linha de interpretação é pautada pelo raciocínio de que o artigo 31 do Decreto-Lei n. 1.598/1977 impõe a obrigatoriedade de ajuste no livro de apuração do lucro real, a despeito de a contabilidade reconhecer as operações em contas patrimoniais. A Secretaria da Receita Federal do Brasil se filia à segunda leitura (COSIT n. 198/2019 e COSIT n. 99.012/2019).

Agora vejamos a situação apresentada na Solução de Consulta COSIT n. 39/2020[2], que trata da possibilidade de amortização do goodwill pago na aquisição da participação de acionistas minoritários em reorganização societária. Para solucionar a questão, ainda que não se trate exatamente de aquisição de participação adicional por entidade controladora, a Administração Fazendária inicia sua análise indicando o conceito do ágio na Lei n. 9.532/1997 como o sobrepreço com relação ao valor contábil. Em complemento, a solução registra que o goodwill é pautado pelos novos métodos e critérios contábeis, de modo que a Lei n. 12.973/2014 apenas o quantifica, mas não o conceitua[3], o que justificaria a remissão ao tratamento estabelecido na contabilidade.

A Receita Federal do Brasil, com base no Pronunciamento CPC n. 15, registrou que o goodwill “somente é reconhecido contabilmente quando ocorre uma combinação de negócios (aquisição de controle)”. Com referência à noção de controle prevista no artigo 116 da Lei n. 6.404/1976, conclui-se que as aquisições da investida pela controladora não se caracterizam como combinação de negócios, motivo pelo qual inexistiria goodwill nessas operações. O fundamento foi o item 67 do ICPC n. 09 (R2). Na visão fazendária, portanto, o reconhecimento somente poderia ocorrer se “existente e registrado em conformidade com as normas contábeis”.

Note-se que nas COSITs n. 198/2019 e n. 99.012/2019 a Administração Fazendária empregou o racional de que a norma tributária, isoladamente considerada, justifica o ajuste extracontábil. Já na COSIT n. 39/2020, foi manifestada a necessidade de identidade entre a disciplina contábil e fiscal. Abro um parêntese, de caminho e às rápidas, para realçar a compreensão da Administração Fazendária sobre o tratamento da Lei n. 12.973/2014 com relação às lacunas entre a legislação tributária e a disciplina contábil. Na COSIT n. 672/2017, tema do primeiro artigo desta série, por exemplo, a orientação foi pautada pelo raciocínio de que “o instituto contábil da redução ao valor recuperável de ativos (impairment test) enseja a redução do valor depreciável de um ativo (redução do valor contábil de um ativo ao seu valor recuperável)”. A questão estava relacionada aos impactos do teste de recuperabilidade nos encargos de depreciação para fins de creditamento de PIS/COFINS.

Observando-se as linhas interpretativas e retornando às transações de capital, o contraste das premissas utilizadas chama atenção. Se o contribuinte adquirir um investimento com sobrepreço com relação ao patrimônio líquido da sociedade investida, ajustado a valor justo, os reflexos tributários somente seriam desencadeados se assim reconhecidos pela contabilidade. As linhas de raciocínio utilizadas nas duas situações (ganho sem perda do controle e aquisição de participação adicional), se examinadas de forma detida, mostram-se, ao menos em um primeiro momento, contraditórias. É assim, veja-se, porque o fator de distinção sobre a “incorporação” das normas contábeis nos casos recém-mencionados, se existente, não consta da fundamentação.

Por mais que o goodwill não guarde relação com o ganho de capital do alienante – até porque são situações distintas e disciplinadas por normas distintas –, a contabilidade afasta o reconhecimento do goodwill justamente porque a aquisição de participação societária adicional é tratada como uma operação entre a controladora e os sócios.

Essa é a lógica contábil para não se reconhecer o goodwill. E ágio, vale lembrar, é, “em noção comum, algo que se paga por um bem, em montante superior ao que seria o parâmetro esperado”[4], independentemente de a operação comparecer no contexto de aquisição de participação adicional.

A despeito de o Pronunciamento CPC n. 15 não se aplicar ao caso, a ICPC n. 9 (R2) é erigida a partir da noção de balanço consolidado da entidade controladora, em que a parcela do patrimônio da investida detida pelos não controladores é contabilizada no patrimônio líquido da investidora em contrapartida de conta passiva. Assim, na aquisição adicional, o passivo é debitado em contrapartida ao patrimônio líquido. E, nessa perspectiva, em se tratando de aquisição de participações societárias de partes não relacionadas, nada obstaria o aproveitamento do ágio. Ademais, a legislação não relaciona os minoritários como partes dependentes – até porque os interesses com relação à sociedade investida podem ser contrapostos –, inexistindo óbices legais a tal aproveitamento. É notável que inexiste vínculo relacional que interfira no valor pago a título de ágio.

Independentemente da orientação que se adote sobre a neutralidade dos IFRS, tema deste artigo, o que se pretende destacar é que se, nas COSITs n. 198/2019 e n. 99.012/2019, o artigo 31 do Decreto-Lei n. 1.598/1977 foi o fundamento para justificar a tributação, a despeito do tratamento contábil (sem trânsito por resultado), a mesma inteligência poderia ser utilizada para autorizar a aplicação dos artigos 20 e 22 do Decreto-Lei n. 1.598/1977. O fundamento de que a Lei n. 12.973/2014 incorporou as normas contábeis não endereçadas de forma expressa, a culminar na ideia de que haveria de existir equivalência entre o ágio contábil e o fiscal, não resistiria a um exame crítico[5]. Para corroborar a afirmação, veja-se que o artigo 37, §3º, prevê que, na aquisição de participação societária em estágios, a pessoa jurídica deverá controlar em subconta o goodwill existente antes da aquisição do controle, distanciando a disciplina contábil da possibilidade de reconhecimento jurídico do ágio.

Acrescente-se, nesse contexto, que as situações apresentadas no cotidiano do contribuinte e do fisco devem ser pautadas por um método hermenêutico que confira homogeneidade ao sistema jurídico tributário. Tudo bem existirem premissas conflitantes, desde que presente o fator de discriminem e, talvez mais importante, que esteja ele evidenciado.

Nos casos recém-analisados, tais fatores, se existentes, são deduzidos de forma quase que intuitiva. Não se identifica um método consistente para solucionar outros casos. Da mesma forma, o entendimento de que legislação incorporou a disciplina contábil em sua plenitude também deve orientar a apreciação da matéria em todos os casos. Das duas uma. O que não há como aceitar – ao menos não sem comprometer o bom funcionamento do sistema do Direito Positivo – é a convivência de premissas logicamente contraditórias.


[1] São exemplos de temas controvertidos na aquisição de participação societária e tangenciam o reconhecimento do goodwill: (i) aquisição reversa, (ii) o passivo fiscal diferido e os reflexos nos “ativos líquidos” para fins de mensuração, (iii) emissão de instrumentos, (iv) adquirente contábil vs. adquirente jurídico e (v) aquisição de participação adicional.

[2] De forma resumida, a consulente, companhia de capital aberto com registro na CVM, era controlada por uma empresa (empresa 1) que detinha 75% do capital social, sendo o restante detido por acionistas minoritários. Além disso, a empresa 1 possuía mais de 50% de outra empresa (empresa 2). Ato contínuo, a empresa 2 fez oferta pública para adquirir a participação dos minoritários mediante oferta pública de aquisição de ações ordinárias, com vistas ao fechamento do capital (“OPA de Fechamento”) da consulente. Após esse ato, a consulente incorporou a empresa 2. A dúvida, no caso, consiste em saber se é possível reconhecer o goodwill para fins fiscais.

[3] Colhe-se do inteiro teor da consulta: “Mais aprofundadamente, o art. 22 da Lei n. 12.973, de 2014, vem a tratar da exclusão do ‘ágio por rentabilidade futura (goodwill)’ decorrente da aquisição de participação societária entre partes não dependentes, apurado segundo o disposto no inciso III do caput do art. 20 do Decreto-Lei n. 1.598, de 26 de dezembro de 1977. Observe-se que o texto fez questão de destacar a palavra ‘goodwill’ entre parênteses, demarcando que se trata de um conceito estabelecido em outro lugar, já que a própria lei não o fez, apenas o mencionou como exsurgente de uma operação de aquisição. […] de acordo com a atual redação dos itens 35 a 39 e 67 da ICPC 09 (R2): a) Reconhece-se o goodwill em aquisição com obtenção de influência significativa; e b) o excesso do valor de aquisição em relação ao valor patrimonial da participação societária que excedem o controle é uma mera ‘diferença’. Não é goodwill e nem mais valia. 39. Pelo exposto até aqui verifica-se que tanto o CPC 15 (R1), quanto o ICPC09 encontram-se em aderência com a conceituação apresentada. Ademais, uma vez dominada a natureza contábil do goodwill, e assentado pelas normas técnicas que o goodwill é reconhecido contabilmente quando ocorre uma combinação de negócios (operação ou outro evento em que o adquirente obtém o controle de um ou mais negócios) […]”;

[4] SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (aspectos tributários). São Paulo: Dialética, 2012. p. 14.

[5] HADDAD, Gustavo Lian Haddad; ABRANTES, Emmanuel Garcia. Convergência, mas nem tanto – O exemplo do regime tributário aplicável na aquisição de participação societária adicional em entidade já controlada. In: SILVA, Fábio Pereira da et al (org.). Controvérsias jurídico-contábeis. v. 2. 1. ed. [S.l.]: Atlas, 2021.

Fonte: JOTA - RODRIGO SCHWARTZ HOLANDA

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