Novas tecnologias propiciam debates sobre a propriedade intelectual das obras

Novas tecnologias propiciam debates sobre a propriedade intelectual das obras

A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, no ano passado, o Recurso Especial n° 1.559.264/RJ, no qual foi decidido, por maioria, que a utilização da tecnologia de streaming para executar obras musicais nas modalidades de simulcasting e webcasting configura execução pública.

Decidiu-se, com isso, que esses modos de usar obras tuteladas pelo direito autoral estariam sob o controle da gestão coletiva do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD).
A decisão ganhou bastante destaque porque faz parte de uma discussão notória acerca da propriedade intelectual. A tecnologia de streaming permite que pessoas com acesso à internet usufruam de obras musicais sem que seja necessário fazer o download dos arquivos. Isso sempre dividiu opiniões em relação à qual categoria de utilização pertence (reprodução, execução pública ou nenhuma dessas).
O debate, no caso do STJ, foi em torno de duas modalidades de streaming. A simulcasting é a que executa as obras simultaneamente com outros canais de mídia, como uma rádio via web, sendo pré-determinada pelo realizador, sem que haja interatividade. A webcasting já é o processo oposto, em que os usuários escolhem quando e o que querem ouvir.
O ministro relator Ricardo Villas Bôas Cueva estabeleceu que ambas as modalidades citadas se encaixam no conceito de execução pública, descrito no §2º do art. 68 da Lei 9.610/98, a Lei de Direitos Autorais (LDA): “Considera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de frequência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica”.
Contudo, em voto divergente, o Ministro Marco Aurélio Bellize, afirmou que é incorreto generalizar o webcasting como execução pública. Sob esse enfoque, seria preciso refletir acerca de uma questão dificilmente levantada nesse assunto: qual lei deve regular a execução pública de obras na internet? Essa pergunta se encontra nos domínios do Direito Internacional Privado.
A Convenção de Berna de 1886 – tratado internacional que delineou padrões de proteção automática e do tratamento nacional aos direitos autorais – definiu que todas as obras receberiam proteção a partir de sua publicação/exteriorização, independente de registro específico. Delimitou-se, também, que a obra publicada e automaticamente protegida em um país teria, em qualquer nação, proteção das respectivas leis nacionais. Dessa forma, assim que uma obra musical é criada, encontra-se logo protegida pela lei nacional de cada país signatário da Convenção.
Nesse sentido, ao se avaliar a execução pública de obras musicais na internet, especificamente pelos mecanismos de streaming, não ficam dúvidas de que esse ato pode atrair a incidência de normas estrangeiras para essa operação jurídica. Conforme questionou o Ministro Relator do STJ, se uma música é disponibilizada em streaming por uma empresa sediada no Brasil, a que legislação cabe determinar as consequências dessa execução pública desautorizada? Somente à brasileira?
Considerando-se o funcionamento da tecnologia de streaming, pode-se, inclusive, questionar onde exatamente ocorre a execução pública. Como afirmar qual o local de frequência coletiva previsto no §2º do art. 68 da LDA, quando a internet é um fenômeno ubíquo e global? Para complementar essa reflexão, vale ressaltar outro trecho do voto vencedor proferido no julgamento:
“Em síntese, a autorização de cobrança de direitos autorais pelo ECAD nas transmissões via streaming não se dá em decorrência do ato praticado pelo indivíduo que acessa o site, mas, sim, pelo ato do provedor que o mantém, disponibilizando a todos, ou seja, ao público em geral, o acesso ao conteúdo” (p. 16).
Portanto, se é a disponibilização do provedor que resulta na cobrança de direitos autorais pela execução pública, e tal provedor está em outro país (o que possivelmente não seria o caso do processo judicial mencionado), não seria a lei do local do provedor aplicável para regular essa relação jurídica? A questão, nesse ponto, desafia a incidência da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) que, em seus artigos 8° e 9°, estabelece o seguinte:
Art. 8o Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados.
Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.
Quem pensa que a lei tem todas as respostas para todos os problemas está equivocado. A primeira questão já concerne sobre os elementos de conexão e se seriam aplicados ao caso ventilado. Sendo o direito autoral um bem móvel, como saber o local em que uma música, disponibilizada na internet, se situa? Ou, como determinar de onde vem a obrigação de pagar direitos autorais pela execução pública de uma obra via streaming? Será no país de quem usufrui ou no qual a obra foi disponibilizada? Se os usuários forem inúmeros, será aplicada de modo individual a lei de cada país para regular possível indenização?
Finalmente, a última reflexão é sobre o papel do ECAD: pode, de modo indiscriminado, cobrar pela execução pública de obras musicais realizadas pelo streaming? A provável presença de características estrangeiras nessa relação não impõe a necessidade de um exame mais proveitoso dessa cobrança? Nesse caso, haveria o risco de extrapolar a competência delegada ao ECAD pela legislação brasileira, indo contra aos princípios da Convenção de Berna e, em última instância, ferindo a soberania de outras nações?

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