Regime das contratações diretas mudou muito pouco com a Nova Lei de Licitações. O artigo 37, inciso XXI da Constituição deixa claro que a licitação é a regra e a contratação direta, a exceção. Entretanto, os números mostram que dispensas e inexigibilidades são muito mais frequentes do que se imagina. Dados do painel de compras do Comprasnet revelam que as contratações diretas correspondem a 71% do total de procedimentos de compra pública na esfera federal, movimentando em média R$ 32,08 bilhões por ano entre 2016 e 2020.
Para a maior parte dos gestores brasileiros, a prática da compra pública no Brasil é um fenômeno quase binário, que orbita entre os polos opostos da contratação direta e do pregão. Um estudo realizado pelo IPEA mostra como o pregão cresceu exponencialmente desde 2001, correspondendo a 93% das licitações realizadas no país em 2011 (FIUZA; MEDEIROS, 2014, p. 93). As “modalidades” da Lei nº 8.666/1993 passaram a ocupar um espaço residual, quase inexpressivo, cada vez mais esvaziado por regimes próprios para concessões, PPPs, terceiro setor e empresas estatais.
Ao incorporar em seu texto trechos de decretos e Instruções Normativas, jurisprudência do Tribunal de Contas da União e até mesmo editais elaborados pela Advocacia Geral da União, a Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) limitou-se a ser uma compilação útil, uma lei maximalista que inova muito pouco e mais ajuda a entender o que a contratação pública é do que, efetivamente, ela poderia ser.
Entretanto, e embora seja merecedora de muitas críticas que recebe nessa seara, é preciso reconhecer que o tratamento dado pela Nova Lei de Licitações às contratações diretas apresenta um saldo que, no geral, é positivo.
O primeiro ponto reside na marcada preocupação de estabelecer, em seu artigo 72, um procedimento prévio à formalização dos processos de contratação direta. Ao fixar as balizas da processualidade administrativa em dispensas e inexigibilidades[1], a Lei nº 14.133/2021 contribui para pensar a contratação direta não mais como o espaço desregrado, mas sim como um verdadeiro procedimento de negociação com fornecedores de base não competitiva, na linha daquele estabelecido, na União Europeia, pelo artigo 32 da Diretiva 2014/24/UE.
Economicamente, procedimentos de contratação pública são mecanismos de revelação de informação que, em um cenário de assimetria e informação incompleta, ficam expostos ao risco de seleção adversa – i.e., a escolha do fornecedor mais propenso a oferecer bens e serviços de qualidade inferior.
A relação entre negociação e competição não deve ser de oposição, mas de grau: em maior ou menor intensidade, ambos precisam fazer parte do sistema de compra pública. Assim, regrar a negociação presente em dispensas e inexigibilidades ajuda a reconhecer que nem todo procedimento de contratação pública precisa ser, necessariamente, pautado por uma lógica competitiva.
Ainda que a enunciação das etapas previstas no artigo 72 não seja, em si, original (a maior parte delas já era recomendada pela Advocacia Pública de vários entes), o estabelecimento das regras do jogo pelo direito positivo não deixa de ser um passo importante.
Por exemplo, a referência expressa ao “documento de formalização da demanda”, no inciso I, já gerou dúvidas quanto à obrigatoriedade do Estudo Técnico Preliminar (ETP) em todas as contratações diretas. O próprio dispositivo, contudo, relativiza o comando com a locução “se for o caso”, sinalizando que os regulamentos futuros devem manter a solução adotada no artigo 8º da Instrução Normativa SEGES/ME nº 40/2020, que já torna facultativa a elaboração de ETP nas hipóteses mais simples de dispensa.
Outro trecho digno de nota é a admissão, nas pesquisas de preços realizadas em dispensas e inexigibilidades, de notas fiscais relativas a objetos semelhantes emitidas até um ano antes da contratação (art. 23, §4º). O prazo é maior que os 180 dias consagrados pela jurisprudência e até hoje repetidos nos regulamentos de muitos entes federados, como é o caso do Estado de São Paulo[2].
A Lei nº 14.133/2021 não mais exige comunicação e ratificação do ato pela autoridade superior, mas só a autorização da autoridade competente. Sem a chancela que vem de cima, o “peso” da caneta aumenta. Nessa linha, o artigo 73 estabelece a responsabilidade solidária do contratado e do “agente público responsável” pela contratação direta havida mediante dolo, fraude ou erro grosseiro.
Se identificar o “responsável” parece algo subjetivo e sujeito a uma causalidade tormentosa (na linha do artigo 28 da LINDB), vale lembrar que já existe regra específica para a Advocacia Pública no artigo 184 do Código de Processo Civil, que não fala em solidariedade e limita o direito de regresso aos casos de dolo ou fraude cometidos por seus membros no exercício das funções.
O artigo 74 previu cinco hipóteses de inexigibilidade de licitação, que inovam pouco em relação ao regime anterior. Os três primeiros incisos – representante comercial exclusivo, profissional do setor artístico e serviços técnicos especializados – já estavam previstos nos artigos 25 e 13 da Lei nº 8.666/1993, com poucas alterações. O credenciamento (inciso IV), desde há muito presente no cotidiano da Administração, foi expressamente incorporado como um procedimento auxiliar que resulta em uma inexigibilidade.
Aliados à tecnologia da informação, os procedimentos auxiliares como o credenciamento, a pré-qualificação e o registro cadastral podem ser os maiores focos de inovação radical da Nova Lei de Licitações, modificando drasticamente a arcaica gestão da cadeia de suprimentos do Poder Público. Por fim, a aquisição e a locação de imóveis (inciso V) era um caso mal colocado no artigo 24, X, da Lei nº 8.666/1993 que agora é reconhecido expressamente como hipótese de inexigibilidade.
Dentre as alterações, talvez a mais polêmica seja a ausência do requisito da singularidade para a contratação de serviços técnicos especializados. A natureza singular do serviço encontra-se prevista, ao lado da “notória especialização” do contratado, no artigo 25, II, da Lei nº 8.666/1993. Neste ponto, o artigo 74, III, da Nova Lei de Licitações repetiu a linguagem do artigo 30, II, da Lei das Estatais, que também não menciona a singularidade como requisito para a contratação direta nesse caso.
Todavia, ao examinar o dispositivo, o Tribunal de Contas da União entendeu que o artigo 30, II, da Lei das Estatais deveria ser interpretado à luz da Súmula nº 252 da mesma Corte, que exige a natureza singular do objeto para que a inexigibilidade seja regular (Acórdãos TCU nº 2.436/2019 e nº 2.761/2020).
Muito embora a Nova Lei de Licitações tenha repetido em seu texto a redação da Lei das Estatais, parece bastante improvável que o TCU mude de posicionamento e chancele a inexigibilidade quando o objeto for rotineiro, ainda que o serviço seja técnico e o prestador notoriamente especializado.
No que se refere às dispensas, a Lei nº 8.666/1993 ficou marcada pela proliferação de exceções ao dever de licitar durante a sua vigência. Originalmente, o artigo 24 previa 15 hipóteses de dispensa.
Hoje, já são 35: mais que o dobro. O artigo 75 da Nova Lei de Licitações previu 28 hipóteses em seus incisos e alíneas, sendo que a maior parte delas já estava presente, com poucas mudanças, no corpo da Lei nº 8.666/1993. Destaco aqui três delas.
A alteração mais evidente reside na majoração dos limites de dispensa em razão do valor (incisos I e II). Após dois ensaios no direito positivo – o primeiro, na Lei das Estatais (artigo 29, I e II); o segundo, nas contratações firmadas durante o período de pandemia (artigo 1º, I, “a” e “b”, da Lei nº 14.065/2020) – os novos limites foram fixados em R$ 50 mil, para compras e serviços em geral, e em R$ 100 mil, para obras, serviços de engenharia e manutenção de veículos automotores.
A referência inédita às viaturas, exemplo clássico de fracionamento indevido na praxe administrativa, não só foi enquadrada na categoria de valor maior como também recebeu regra específica para a aferição dos valores de dispensa (§7º). O impulso dado à dispensa eletrônica, já presente no Decreto nº 10.024/2019, recebeu regra específica na Nova Lei.
O tema já está em consulta pública e a regulamentação proposta é bastante ampla, abrangendo não só contratações de bens e serviços, mas também obras e serviços de engenharia. A maior flexibilidade na forma de pagamento (via cartão corporativo) é compensada no trade-off por uma transparência mais intensa, com a divulgação do respectivo extrato no Portal Nacional de Contratações Públicas (art. 75, §4º).
Nas contratações emergenciais (inciso VIII), a maior novidade em relação ao texto do artigo 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993 é a expansão do prazo máximo de vigência do contrato, que passa de 180 dias para um ano. O dispositivo permanece vedando a prorrogação e inova ao proibir a recontratação de empresa já contratada emergencialmente no passado.
Por fim, nas dispensas decorrentes de descentralização administrativa (inciso IX), permanece a possibilidade de contratar diretamente órgãos ou entidades que integrem a Administração Pública, desde que tenham sido criados para esse fim específico e o preço seja compatível com o mercado. A nova redação suprimiu o incompreensível trecho do artigo 24, VIII, que exigia a criação anterior à Lei nº 8.666/1993.
A norma não viabiliza a contratação de empresa estatal que atua concorrencialmente, nem de entes que integrem outra Administração Pública, embora a ECT tenha protagonizado um debate recente acerca do tema que só terminou com a cassação de dois acórdãos do TCU pelo STF (MS nº 34.939/DF, Acórdãos TCU nº 1.800/2016 e nº 213/2017).
As mudanças destacadas neste texto mostram que o regime das contratações diretas mudou muito pouco com a Nova Lei de Licitações. O resultado final parece positivo, especialmente na parte que confere maior processualidade e transparência ao procedimento prévio de dispensas e inexigibilidades. Entretanto, a percepção geral é de uma melhoria tímida, meramente incremental, que deixa a sensação de que havia muito mais a avançar. Às vezes, é preciso que tudo mude para que continue exatamente como está[3].
Fonte: Jota