Há quatro anos os contribuintes consagraram o que chamam de tese do século, ao conseguirem, no Supremo Tribunal Federal (STF), a decisão de que o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins. A discussão consta no recurso extraordinário 574.706 (tema 69), no entanto, logo após a decisão, a vitória ficou com um gosto de “ganhou mas não levou”, já que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) interpôs embargos de declaração pedindo a modulação dos efeitos da decisão.
Para a surpresa dos tributaristas, a PGFN, por meio de uma tese inédita, pediu para os ministros do STF que seja excluído da base do PIS e da Cofins o chamado ICMS recolhido, e não o destacado na nota fiscal, o que, na prática, diminui o imposto a ser retirado base das contribuições. A PGFN defende também que os efeitos da decisão valham a partir do julgamento dos embargos.
Em entrevista ao JOTA, o Procurador-Geral da Fazenda Nacional, Ricardo Soriano, defende a modulação dos efeitos da decisão para manter a segurança jurídica no Brasil. Para ele, a decisão do STF de 2017 mudou a jurisprudência que vinha sendo adotada nos tribunais e, por isso, os efeitos não podem retroagir em nome do impacto financeiro que pode causar aos cofres públicos.
Na análise de Soriano, sem o acolhimento dos embargos de declaração haverá a restituição de valores muito superiores àqueles que foram efetivamente recolhidos aos cofres estaduais a título de ICMS.
Soriano afirma ainda que a modulação de efeitos também vai resolver o problema das milhares de ações que abarrotam o Poder Judiciário e solucionar os graves desequilíbrios concorrenciais e de isonomia quanto a contribuintes que não judicializaram o tema ou que, tendo judicializado, obtiveram respostas distintas do Poder Judiciário ao longo dos anos, seja quanto à regularidade da exação, seja quanto ao critério de liquidação de sentenças.
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
A PGFN pode explicar o núcleo central da tese levada ao Supremo?
A pergunta demanda a explicação de alguns conceitos.
O ICMS é um tributo não-cumulativo, ou seja, o que foi pago na etapa anterior é compensado com o que é devido na etapa posterior, sendo recolhida a diferença aos cofres dos estados. O objetivo do sistema é obter a neutralidade na tributação, a fim de que o número de etapas de determinada cadeia de produção seja irrelevante para o tributo pago ao final.
O ICMS destacado na nota de saída envolve o ICMS pago pelos contribuintes produtores dos insumos utilizados em determinado estabelecimento, acrescido do ICMS pago pelo titular do estabelecimento. Ou seja, o ‘ICMS destacado’ é o ICMS devido pelo estabelecimento comercial mais o ICMS pago por contribuintes que estão nas etapas anteriores da cadeia produtiva. Tal valor é destacado na nota a fim de gerar um crédito para o contribuinte que, eventualmente, esteja no ponto seguinte da cadeia produtiva.
O ICMS efetivamente pago – também conhecido como ICMS líquido ou ICMS a recolher – é o tributo que cada contribuinte deve recolher ao fisco estadual, após subtrair-se o crédito correspondente ao tributo destacado na nota na etapa anterior do valor obtido da incidência da alíquota sobre o preço de venda.
Assim, entende a Fazenda Nacional que, considerando que o fundamento utilizado pelo tribunal [STF] para excluir o ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS foi o de que tais valores não foram apropriados pelo contribuinte, mas destinados aos cofres estaduais, somente se afigura viável excluir de tal base o ICMS a recolher. Somente tais valores não foram incorporados ao patrimônio do contribuinte, pois foram transferidos aos estados.
A tese da Fazenda nos embargos que propõe a separação do ICMS pago do destacado é inédita?
A tese é inédita porque a pretensão é inédita. A interpretação realizada por algumas empresas leva à multiplicação dos valores a serem excluídos da base de cálculo do PIS e da Cofins, sem qualquer justificativa plausível. Na prática, isso levará à restituição de valores muito superiores àqueles que foram efetivamente recolhidos aos cofres estaduais a título de ICMS.
Em outros termos, a restituição de valores que não foram pagos pelo autor da ação, mas sim pelos contribuintes que estavam em etapas anteriores da cadeia produtiva que, a propósito, também pretendem a restituição.
A PGFN ficou surpresa com a resistência de alguns contribuintes aos esclarecimentos solicitados nos embargos, já que, neste ponto, o recurso foi mais fruto de cautela do que da suposição de que a adoção do entendimento contrário fosse viável.
Qual a importância da modulação do julgamento dos embargos no RE 574.706 em relação a outras ações no STF?
A tese defendida pela Fazenda Nacional é bastante conhecida pela Corte. Trata-se da demonstração de que houve uma clara mudança de entendimento do Poder Judiciário. Diante da superação da jurisprudência histórica do STF, o próprio artigo 927, §3º, do CPC [Código de Processo Civil] orienta à modulação de efeitos.
Se outros casos apresentarem as mesmas características, igualmente as decisões do STF deverão ter seus efeitos modulados.
O RE 574.706 foi um julgamento amplamente disruptivo e revolucionário no sistema tributário tal como era visto desde antes da Constituição de 1988 e, até o momento, relevantes questões ainda estão pendentes de definição pelo STF. Por esta razão, o julgamento dos embargos de declaração é tão importante.
Essa é uma questão sobre a qual não devem pairar dúvidas: desde o extinto Tribunal Federal de Recursos, há entendimento sumulado sobre o assunto, repetido em duas súmulas do STJ [Superior Tribunal de Justiça] e em julgamento de recurso sob a sistemática dos repetitivos. Paralelamente, o STF possuía jurisprudência pacífica sobre a natureza infraconstitucional da controvérsia, o que significa que os precedentes do STJ representavam a última palavra sobre a questão. Uma análise criteriosa do julgamento do RE 240.785 indica que não houve o rompimento com a tradição de décadas da jurisprudência do STF, o que fica evidente com o reconhecimento da repercussão geral do Tema 69 já em abril de 2008, visando a debater de maneira profunda o tema.
Vide, por exemplo, trecho da ementa do AgRg na AC 3643/RJ, Rel. Min. Rosa Weber, julgado pela Primeira Turma em junho de 2014, onde consta que “não há como antever a posição definitiva desta Corte sobre o tema, mormente considerada a substancial alteração de sua composição desde o pedido de vista formulado pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento do RE 240.785/MG”.
Imperiosa, portanto, diante da virada jurisprudencial ocorrida, a modulação de efeitos, já postulada por ocasião do próprio julgamento de mérito.
Se a tese da Fazenda for acolhida no STF pode haver repercussão em outras matérias controversas sobre tributação?
Sim, sem dúvidas, tem potencial para alcançar inúmeras situações análogas. Afinal, o sistema tributário brasileiro está estruturado com base na possibilidade de cobrança de tributo sobre tributo, como ocorre no ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.
Pelo acórdão atual não há modulação de efeitos. Se esse entendimento se mantiver, a União terá que ressarcir os contribuintes nos últimos cinco anos? Como é feita a contagem desse prazo? Só vale para quem tem processo judicial em curso sobre o assunto?
Sem a modulação de efeitos, a decisão alcança os cinco anos anteriores à propositura de cada ação. Tudo vai depender da data do ingresso em juízo. Tendo ajuizado uma demanda em 2000, o contribuinte receberá a restituição de 25 anos de excesso de exação; tendo ajuizado em 2018, o contribuinte receberá sete anos. Quem questionar o tema no futuro poderá reclamar os últimos cinco anos.
A modulação temporal pedida pela PGFN é a partir da publicação do acórdão do julgamento de 2017 ou a partir do julgamento dos embargos de 2021? Os cinco anos contariam de qual dessas datas?
O pedido de modulação é a partir do julgamento dos embargos de declaração. É importante destacar que a Fazenda Nacional declinou o seu pedido de modulação de efeitos desde o julgamento do mérito, oportunidade em que os ministros orientaram que as partes expusessem suas pretensões pela via dos embargos de declaração.
Acolhido o pedido, os contribuintes terão direito de não mais recolher o ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins após o julgamento. No período anterior, o tributo será devido, como entendia a jurisprudência do Poder Judiciário.
A Fazenda entende que é possível modular com seis votos em vez de oito? Como ocorreu no RE 638.115?
Sim, já que se trata de mudança de jurisprudência histórica da Corte, que, ademais, vem amparada em súmulas do antigo TFR, do STJ e no julgamento de recurso repetitivo. Deve ser aplicado, portanto, o artigo 927, §3º, do CPC, que não exige quórum qualificado para a modulação.
Na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021 não há menção aos valores de impacto deste julgamento. Dessa forma, ainda continua valendo o impacto de R$ 45,8 bi/ano e R$ 229 bi em 5 anos?
O Anexo de Riscos Fiscais da LDO consolida os riscos judiciais possíveis. Por já haver decisão do Plenário do STF desfavorável à Fazenda Pública, o Tema 69 [RE 574.706] atualmente é classificado como risco provável, constando, por essa razão, das provisões para perdas do Balanço Geral da União (R$ 258,3 bilhões). Essa classificação de risco obedece à Portaria AGU 40/2015, com as modificações realizadas pelas Portarias AGU 318/2018 e 514/2019.
É importante destacar que esses valores não consideram a possibilidade de dedução do ICMS destacado na nota fiscal, o que tornaria o impacto orçamentário mais difícil de prever.
Na visão da PGFN, qual é a importância da modulação desses embargos? O que ela vai significar para a União?
Segurança jurídica e previsibilidade. Significa a viabilidade da reorganização financeira e orçamentária do Estado brasileiro após a ocorrência de algo equivalente a uma mudança normativa, que se operou pela modificação da jurisprudência histórica do Judiciário. A pacificação jurisprudencial conferia à União a certeza de que os valores arrecadados, tão relevantes para o orçamento público, não corriam qualquer risco e poderiam ser considerados para a consecução de suas políticas públicas.
A superação do entendimento pacífico não pode ter efeitos retroativos, quebrando a base de confiança até então existente e impactando tão gravemente toda a programação orçamentária do país.
Se a confiança na jurisprudência pacificada já não consubstanciasse base jurídica suficiente para a modulação, o problema da litigiosidade é algo que preocupa muito a Fazenda Nacional. É angustiante imaginar que continuaremos litigando em dezenas de milhares de processos em curso, congestionando varas federais país afora, atrasando a resolução de litígios que merecem atenção individualizada de cada magistrado.
A modulação de efeitos, além de resolver o grave problema das milhares de ações que abarrotam o Poder Judiciário, solucionará os graves desequilíbrios concorrenciais e de isonomia quanto a contribuintes que não judicializaram ou que, tendo judicializado, obtiveram respostas distintas do Poder Judiciário ao longo dos anos, seja quanto à regularidade da exação, seja quanto ao critério de liquidação de sentenças.
Fonte Jota