LGPD, a heroína (in)desejada das distopias
Essa reflexão é para você: executivo desconfiado do seu advogado lhe bombardeando com produtos ligados à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD ou Lei 13.709 de 2018); advogado que já esgotou as alternativas de legal design para traduzir a relevância da LGPD; economista ortodoxo ou heterodoxo; para você que sonha (ou teme) ser um Data Protection Officer (DPO); para você que adora uma distopia, mas morre de medo que ela se torne realidade ou para você que não é nenhum dos anteriores mas, mesmo assim, está curioso.
O Show de Truman, distopia de 1998, dirigida por Peter Weir, retrata a vida de um vendedor de seguros, Truman, que nasceu e cresceu sem saber que era o astro de um reality show, transmitido 24 horas por dia. Ao longo da história o protagonista percebe que há algo errado com os padrões repetitivos aos quais é diariamente submetido e (sim, o título é um spoiler confirmado pela próxima frase) no ápice do exercício de seu direito à intimidade e à vida privada, contrariando o viés do status quo e as heurísticas da representatividade, da disponibilidade e da ancoragem ensinados por Amos Tversky e Daniel Kahneman, a personagem opta por enfrentar o desconhecido.
A estória é comparável ao Mito da Caverna, exceto pelo fato de que, talvez motivado pela heurística do afeto, desejando reencontrar um amor do passado e ignorando quaisquer outros riscos e consequências envolvidos, Truman escolhe com facilidade o mundo inteligível e desconhecido, em detrimento do mundo sensível e conhecido.
Os defensores de uma política econômica ortodoxa rapidamente poderiam presumir que a facilidade de Truman para escolher o mundo inteligível decorre de um forte desejo de não ser manipulado por um estado intervencionista, assim como o Show, em si, atende a uma demanda natural do mercado e, portanto, existiria enquanto assim pretendesse o mercado.
Por outro lado, um economista heterodoxo poderia defender que o Estado deve sim intervir para garantir padrões mínimos para funcionamento daquele mercado de entretenimento capazes de garantir: que ninguém seria obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, o sigilo de dados e, ainda, o acesso à informação.
Ora, independentemente das reais motivações de Truman para sair, o fato é que a maioria de nós escolhe, diariamente, ficar no show: ao acordar confirmamos para nosso celular se realmente dormimos das “x” às “x” horas, em seguida, ainda na cama, acessamos as notícias ou informações de nosso interesse para começar o dia sem surpresas, permitimos que o celular monitore nosso exercício físico, pedimos nossas refeições por aplicativos, fazemos nossas compras online, nos descontraímos com filtros engraçados e, em tempos de pandemia, monitoramos até mesmo nossos batimentos cardíacos e nível de oxigênio no sangue com o celular.
Não sabemos dizer se escolhemos ficar no show como manifestação de um comportamento de manada, já que todos ao nosso redor usam essas ferramentas facilitadoras do dia a dia, ou como resultado de um vício causado intencionalmente por algoritmos. O documentário “O Dilema dos Dados”, dirigido por Jeff Orlowski, explica essas questões com maior propriedade, caso lhe interesse.
O problema (ou solução), é que, diferentemente de um terapeuta, que lhe conduz a uma compreensão maior sobre seus pensamentos a partir das informações recebidas, com garantia do sigilo médico-paciente, o algoritmo no seu celular calcula perfeitamente quem é você e o que lhe interessa com base em todas as informações (conscientemente ou não) concedidas, sequer compartilha essas descobertas com você, e nem sempre garante a manutenção da confidencialidade desses dados.
Para tornar mais palpável o risco do acesso e manutenção indiscriminados dos dados pessoais no mundo real vale relembrar, com brevidade, alguns casos de uso de dados que viraram notícia: a omissão da Uber dos Estados Unidos sobre um incidente relevante de vazamento de dados de seus usuários em 2016; o impacto das ações da Cambridge Analytica na eleição de Trump em 2016; a fraude na área da saúde descoberta em 2019 pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, envolvendo a apropriação de dados pessoais de saúde sem o consentimento informado dos titulares; entre tantos outras notícias sobre aplicativos espionando os usuários com as quais nos deparamos constantemente.
Desse cenário, decorre o papel da LGPD na sociedade em que vivemos. Para quem não conhece ou só ouviu falar de relance no jornal: a referida lei não inova em garantia de direitos, uma vez que todos os direitos por ela tutelados (mencionados acima na possível racionalização do economista heterodoxo) já estavam garantidos na Constituição Federal, no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor, no Marco Civil da Internet e na Lei de Acesso à Informação. Consequentemente, tais direitos já podiam ser protegidos proativamente por órgãos como Ministério Público e PROCON.
A real inovação da LGPD é a regulamentação, com maior detalhe e coercibilidade, da proteção de nossa intimidade e vida privada.
Já que estamos vivendo uma crise sanitária, vale a comparação com a medicina: a LGPD, equivale ao código de ética médica das empresas que lidam com dados pessoais e dados pessoais sensíveis, com a garantia de que os pacientes (os titulares dos dados) terão de consentir de forma livre e informada sobre o tratamento de seus dados.
Ou seja, o objetivo é reproduzir com os dados pessoais aquele momento em que seu médico senta ao seu lado antes de uma cirurgia ou do início de um tratamento relevante e lhe explica todos os prós e contras daquela opção, para que você possa, munido das informações necessárias, optar por seguir ou não com aquele tratamento.
Nesse sentido, destacamos o princípio da finalidade no tratamento de dados, formalizado pela LGPD, segundo o qual, a realização do tratamento deve atender a propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular.
Com relação à questão da coercibilidade, a norma cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) que, diferentemente do Ministério Público e do PROCON, dedicará todos os seus recursos humanos, tecnológicos e financeiros à proteção de dados (lamentavelmente a autoridade não terá a autonomia e independência necessárias para gozar desses recursos, uma vez que pertence à Administração Pública Direta, ou seja, está subordinada à Presidência da República).
Por que, afinal, a LGPD seria a heroína (in)desejada das distopias? Distopia é a descrição de uma sociedade hipotética repressora de direitos humanos fundamentais.
Em distopias célebres como 1984, de George Orwell, O Conto de Aia, de Margaret Atwood e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, a sociedade hipotética descrita se instala com o auxílio constante e massivo da tecnologia para controle daqueles que, a partir de então perderiam sua autonomia.
Considerando que essas tecnologias se constroem e aperfeiçoam a partir do controle de um grande volume de dados pessoais, a LGPD agiria como heroína ao corrigir a assimetria informacional posta, empoderando, com clareza de informações, o titular dos dados, e, consequentemente, capacitando- o a combater preventivamente a instalação da sociedade distópica.
Caso esses belos argumentos ético-filosófico-sociais não sejam suficientemente convincentes, a LGPD, diferentemente de um simples nudge para as empresas que realizam tratamento de dados pessoais, traz também algumas penalidades, como multas de até 2% do faturamento da Pessoa Jurídica em seu último exercício limitada, no total, a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por infração, sem prejuízo dos custos com: a criação e instalação de um programa de Compliance específico para a LGPD, capaz de comprovar que a empresa vem cumprindo os ditames da lei, a contratação de um DPO independente e a contratação de um seguro que garanta cada uma das responsabilidades assumidas por este DPO, que não são poucas.
E aí, a LGPD vai te ajudar a sair do show ou vai atrapalhar seu show?
Fonte : JOTA. PEROLLA SANTOS RODRIGUES GUALTER