Marco regulatório liberou os meios de pagamento da regulação engessada das instituições financeiras
Neste mês de outubro de 2020 chega a seu sétimo ano a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, criadora do regime jurídico básico das instituições de pagamento. Foi ela a base da regulamentação do Banco Central do Brasil sobre a matéria, a partir de diretrizes do Conselho Monetário Nacional.
Mas não foi só nessa área que seus efeitos se fizeram sentir. Suas normas caíram em terreno fértil, dando o mínimo de institucionalização a entidades não financeiras que passaram a oferecer, com sucesso, serviços sucedâneos aos das instituições bancárias e financeiras em geral. O resultado, que se prenuncia, pode ser forte desconcentração em relação a várias das atividades hoje desenvolvidas por instituições financeiras, principalmente bancos. O objetivo do presente artigo é descrever esse processo e as principais questões jurídicas relativas a tais serviços sucedâneos.
A Crise do Conceito de Atividade Privativa de Instituição Financeira
A legislação brasileira sobre instituições financeiras sempre definiu as instituições financeiras por seu perfil funcional, ou seja, por sua atividade.
O Código Comercial de 1850, nesta parte hoje revogado, descrevia assim os banqueiros:
Artigo 119. São considerados banqueiros os comerciantes que têm por profissão habitual de seu comércio as operações chamadas de Banco.
Da mesma forma o fez a legislação subsequente, a Lei nº 1.083, de 22 de agosto de 1860 e seu Decreto nº 2.711, de 19 de dezembro de 1860, e o Decreto nº 14.728, de 16 de março de 1921, igualmente optavam por definição funcional, definindo o banco pelo exercício de atividades tais como o empréstimo, o desconto de títulos e o recebimento de depósitos.
Eram, no entanto, abordagens fragmentadas e episódicas, quando não tautológicas, como a do Código Comercial. Foi só com o movimento militar de 1964, e seu ímpeto de reorganização legislativa, que foi editada lei definindo de forma abrangente e aparentemente lógica a atividade. Essa regra, ainda hoje vigente, consta do artigo 17 da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964:
Artigo 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.
Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual. (sem destaque no original)
Mas essa regra nova era ainda imperfeita. De fato, incidia no defeito da excessiva abrangência ao considerar instituição financeira toda pessoa física ou jurídica que coletasse ou aplicasse recursos próprios ou de terceiros. Ora, se assim fosse, rara seria a pessoa física ou jurídica que não pudesse ser chamada de instituição financeira, pois afinal todos (ou quase todos) aplicamos recursos em produtos financeiros, ou, eventualmente e de forma menos prudente, coletamos recursos. De onde ter a jurisprudência com o passar do tempo determinado que a coleta e aplicação deveriam ser cumulativas, e feitas com habitualidade e intuito de lucro, sob a forma de mútuo.[
Além disso, o artigo 17 reservava também às instituições financeiras a custódia de valores de terceiros.
Ocorre que a partir dessa definição estrita se cria sistema fechado em que o funcionamento das instituições financeiras depende de autorização do Banco Central do Brasil, cuja concessão é discricionária. E cuja falta leva a configuração de crime de exercício de atividade financeira sem autorização, nos termos do artigo 16 da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986.O mesmo sistema impõe regime rigoroso tanto em relação a aspectos institucionais das instituições financeiras, como para suas operações, cobrindo requisitos de capital e patrimônio líquido, e operações restritas ou vedadas.
Esse arcabouço carregava consigo atividades que não eram a rigor privativas de instituições financeiras, pela confiança que a regulação delas despertava, como os serviços de pagamentos.Tais atividades não seriam legalmente cobertas pelo conceito de atividade privativa, e portanto não reservadas legalmente às instituições financeiras, mas acabavam na prática sendo desempenhadas por elas. Deste tema, e das opções que se abriram com a Lei nº 12.865/2013, passaremos a tratar no próximo item.
O Advento da Lei nº 12.865/2013
A Lei nº 12.865/2013 não alterou a exclusividade dada a instituições financeiras quando exercem atividade privativa ligada a captação e repasse cumulativos de recursos na forma prevista no artigo 17 da Lei nº 4.595/64 e sua interpretação jurisprudencial.
No entanto, seja por normas expressas, seja pela credibilidade conferida a novos agentes, favoreceu a alteração, ao menos parcial, da reserva de muitas atividades às instituições financeiras. Vejamos como.
O Novo Regime da Guarda de Valores – Como vimos, o artigo 17 da Lei nº 4.595/1964 previa como atribuição privativa das instituições financeiras também a “custódia de valores de propriedade de terceiros”, ao lado da atividade de intermediação de recursos. Estas regras precisavam de interpretação, pois de outra forma armazéns gerais, empresas de guarda de documentos e mesmo chapelarias de casas de espetáculo se tornariam instituições financeiras. Uma possível limitação a essa absurda extensão poderia ser obtida se fosse aplicada a definição de instituição financeira usada para fins criminais pela Lei nº 7.492/1986 (Lei de Crimes do Colarinho Branco), abarcando a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários (sem destaque no original).
Mas essa limitação, em que pese sua boa lógica, era meramente interpretativa, e sujeita portanto a dúvidas. Ficaria por ela vedado o funcionamento de instituições que, sem exercer a atividade de intermediação de recursos, guardassem valores em moeda para transferi-los a terceiros?
É nesse ponto que se insere a Lei nº 12.865/2013, assim definindo em seu artigo 6º, incisos III e IV, as instituições de pagamento e suas contas:
III – instituição de pagamento – pessoa jurídica que, aderindo a um ou mais arranjos de pagamento, tenha como atividade principal ou acessória, alternativa ou cumulativamente:
a) disponibilizar serviço de aporte ou saque de recursos mantidos em conta de pagamento;
b) executar ou facilitar a instrução de pagamento relacionada a determinado serviço de pagamento, inclusive transferência originada de ou destinada a conta de pagamento;
c) gerir conta de pagamento;
d) emitir instrumento de pagamento;
e) credenciar a aceitação de instrumento de pagamento;
f) executar remessa de fundos;
g) converter moeda física ou escritural em moeda eletrônica, ou vice-versa, credenciar a aceitação ou gerir o uso de moeda eletrônica; e
h) outras atividades relacionadas à prestação de serviço de pagamento, designadas pelo Banco Central do Brasil;
IV – conta de pagamento – conta de registro detida em nome de usuário final de serviços de pagamento utilizada para a execução de transações de pagamento;
Essas regras foram completadas por normas específicas reconhecendo, mais do que criando, as instituições de pagamento que existiam quando do advento da lei, e dando a elas regime jurídico preciso. São elas:
as emissoras de instrumentos de pagamento pré-pagos ou emissoras de moeda eletrônica, que recebem em contas de pagamento valores em reais a serem utilizados em transferências financeiras ou compras;
as emissoras de instrumentos de pagamento pós-pagos ou emissoras de cartões de crédito, que se relacionam com os usuários finais, emitindo o plástico ou o sistema eletrônico em que se imputam pagamentos, cobrando as faturas dos usuários e repassando os valores para as credenciadoras;
as credenciadoras ou adquirentes, com a função de credenciar estabelecimentos para receber pagamentos por meio de cartões, receber dos emissores de cartões e pagar tais estabelecimentos.
Isso tudo segundo regras contidas na Circular nº 3.885, de 26 de março de 2018, do Banco Central do Brasil (artigo 4º). Esse sistema regulatório permitiu a operação sem amarras ou dúvidas regulatórias dessas entidades, que acumulam recursos para simples transferências financeiras ou compras, ou emitem os cartões que usamos no dia a dia, sempre nas chamadas contas de pagamento.
Efeito Reputacional da Autorização – Em um fluxo paralelo, a Lei nº 12.865/2013 deu ao Banco Central do Brasil, autarquia de capacidade técnica reconhecida, poder para, sob diretrizes do Conselho Monetário Nacional, disciplinar, autorizar a constituição e fiscalizar as instituições de pagamentos sob diretrizes do Conselho Monetário Nacional. A partir daí instituiu-se regime regulamentar importante, embora mais leve do que o aplicável a instituições financeiras. O que é justificável, visto a distinção fundamental entre as instituições financeiras e as instituições de pagamento: enquanto as instituições financeiras coletam recursos para aplicação discricionária, as coletas das instituições de pagamento são feitas sempre com designação de finalidade certa, transferir a credenciadoras (emissoras de meios pós-pagos), a empresários recebedores finais (credenciadoras) ou a terceiros designados pelo titular da conta de pagamento (emissores de moeda eletrônica).
A institucionalização das empresas de pagamentos decorrente da Lei nº 12.865/2013 emprestou a elas maior credibilidade, afinal hoje sujeitas a regras de autorização e funcionamento, aumentando o potencial de atração de clientes das já existentes e estimulando a formação de novas. Evidência disso é a admissão das instituições de pagamento em igualdade de condições com as instituições financeiras como participantes do arranjo PIX do Banco Central do Brasil (artigo 23, § 1º do Regulamento Anexo à Resolução BCB nº 1, de 12 de agosto de 2020).
Ativos Creditícios e Garantias – Mas não foi só nesse aspecto que a Lei nº 12.865/2013 favoreceu as transações de pagamentos. Teve ela o mérito de perceber que as instituições de pagamento e seus clientes empresários precisariam de recursos para alavancar suas atividades, e que poderiam obtê-los dando como garantia seus créditos gerados pelos mecanismos de pagamento com cartões. Essa a razão da previsão do artigo 12-A, inciso III da mesma Lei[14], no sentido de que os créditos das instituições de pagamento podem ser dados em garantia de operações de créditos, desde que reservados os recursos obtidos para a quitação de obrigações de pagamentos das instituições em questão. Norma que permite por exemplo que as credenciadoras deem em garantia os créditos que detêm contra emissores de cartões de crédito, gerando recursos que podem ser usados em operações de antecipação a seus clientes finais, vendedores de bens e serviços necessitados de capital de giro antes da data limite para recebimento dos valores de venda com cartões.
Houve também disposições mais instrumentais, como a Resolução nº 4.593, de 28 de agosto de 2017, do Conselho Monetário Nacional (artigo 2º, inciso II, letra b), e a Circular nº 3.952, de 27 de junho de 2019 (artigo 4º), que consideraram como ativos passíveis de registro centralizado para fim de transferência e constituição de garantias os créditos que, no âmbito de um arranjo de pagamento, sejam devidos por instituição de pagamento aos seus clientes. Ou seja, tipicamente os recebíveis devidos pelas credenciadoras a seus clientes empresários.
Essa definição soma-se a regra dos artigos 26 e 26-A da Lei nº 12.810, de 15 de maio de 2013, segundo a qual a constituição de garantias sobre esses créditos seria obrigatoriamente efetuada nos registros centralizados.
Os empresários clientes de credenciadoras podem usar seus créditos para obter com facilidade antecipações, transferindo-os por desconto ou como garantia fiduciária às instituições financeiras. Acontece que, pela proximidade dos empresários clientes com as credenciadoras, muitas vezes prevalecem condições mais vantajosas para os empresários na transferência a fundos de recebíveis organizados sob auspícios da própria credenciadora. Esses fundos representam investidores e, portanto, a possibilidade de registro centralizado para sua transferência facilita a transação, torna-a mais segura e diminuindo o desconto financeiro aplicado para se determinar o preço de aquisição.
Afastamento do Paradigma “Instituição Financeira” – O paradigma da instituição financeira, como verdadeiro colete de madeira, engessava o Direito no tratamento das instituições financeiras. Isso pela tentativa de trazer alguma ordem a operações de pagamentos aplicando a elas artificialmente o paradigma regulatório da instituição financeira.
Usaremos como ilustração o exemplo de operações de antecipação por credenciadoras, realizadas em favor de seus clientes empresários. Note-se que as modalidades de obtenção de recursos junto a instituições financeiras mediante transferência de recebíveis por clientes de credenciadoras não devem ser confundidas com forma ainda mais direta de tais clientes obterem capital de giro para suas atividades: as próprias credenciadoras fazerem o adiantamento, simplesmente antecipando o que devem. Tal operação pode ser feita por taxas livremente pactuadas, pois se trata de mera antecipação de dívida que a credenciadora já tem ao comerciante que vendeu a portador de cartão.
Não haveria em primeiro lugar atividade privativa de instituição financeira, como definida mais acima neste texto, porque nesse caso a credenciadora está apenas adiantando o que já deve a seu cliente, sem fazer mútuo financeiro. E mesmo que o fizesse, nada haveria a objetar se não usasse recursos captados de terceiros, pois só se houvesse intermediação haveria atividade privativa.
Também não se aplicaria qualquer vedação aos juros cobrados resultantes de regras contra a usura. Em termos jurídicos, juros são frutos civis produzidos pelo capital entregue por seu titular à utilização de terceiro. Diferente dessa hipótese é aquela em que não há entrega de capital por seu titular a terceiro, mas simples pagamento de dívida antecipada, com aplicação de desconto em virtude da antecipação. Nesse caso a taxa de desconto, que utiliza juros de mercado como metodologia de cálculo, é usada como mero paradigma indenizatório: serve para compensar o titular pela perda antecipada de capital, que poderia ter proveitosamente empregado por ele alhures antes de solver a obrigação.
Esse o verdadeiro motivo da possibilidade de antecipação de créditos por credenciadoras a seus clientes, diretamente ou feitas por fundos de recebíveis a elas ligados. Conclusão nesse sentido era já antes do advento da Lei nº 12.865/2013 consagrada pela Súmula 583, do Superior Tribunal de Justiça, em cujos termos as empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usura. Só que o acerto do destino escondia aí erro no caminho, típico de contexto anterior à Lei nº 12.865/2013, em que não se reconhecia especificidade às instituições de pagamento, fazendo os tribunais e as leis esforços para enquadrá-las na figura pré-existente de instituições financeiras. Emissoras de cartão de crédito e credenciadoras, ainda que administrem etapas envolvidas nos pagamentos por cartões, não são instituições financeiras, por não intermediarem recursos por meio do crédito.
Outro exemplo do mesmo fenômeno de falso paradigma, hoje felizmente superado, é a Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, que em seu artigo 1º, § 1º, inciso VI equipara as administradoras de cartão de crédito a instituições financeiras para fazê-las respeitar o sigilo bancário, a que hoje se subordinam por disposição direta do artigo 17 da Resolução nº 4.282, de 4 de novembro de 2013, do Conselho Monetário Nacional.
O mesmo ocorria em relação às regras administrativas de registro de clientes e notificação de operações suspeitas de lavagem de dinheiro, que se aplicavam por equiparação a administradoras de cartões de crédito por força do artigo 9º, parágrafo único, inciso III da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, e que hoje têm aplicação direta a todas as instituições financeiras e de pagamento por via do artigo 1º da Circular nº 3.978, de 3 de janeiro de 2020, do Banco Central do Brasil.
Conclusão
Conclui-se do exposto que a Lei nº 12.865/2013 teve como importante efeito liberar os meios de pagamento do verdadeiro colete de madeira da regulação das instituições financeiras, que sempre as assombraram. Reconhecidas em sua especificidade, ficaram livres para atuar em tudo que não transgredisse o conceito de atividade privativa de instituição financeira do artigo 17 da Lei nº 4.595/1964. E esse tudo representa muito: além das atividades já existentes de emissão e credenciamento de meios de pagamentos (cartões de crédito, se em forma física), surgiu a possibilidade de custodiarem recursos em contas com moedas eletrônicas, a serem usados sem discricionariedade, mas segundo instruções do detentor, para transferências e compras. Além disso, ficou estabelecido sistema de registro para a transferência, inclusive como garantia, de créditos gerados no contexto dos meios de pagamentos. E por fim, houve aperfeiçoamento de instituições jurídicas, pois a regulação das instituições de pagamento não mais precisa ser atrelada a equiparação artificial a instituição financeira, como fazia a Súmula 283 do STJ para permitir a livre pactuação de taxas de desconto em operações envolvendo emissoras e credenciadoras.
Que venham os próximos sete anos.
fonte: JOTA