Os desafios do planejamento patrimonial sucessório dos bens digitais
Em fevereiro de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, firmou o entendimento, com repercussão geral (Tema 825), no sentido de que os estados e o Distrito Federal não possuem competência legislativa para instituir a cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD) nas hipóteses de doações e heranças instituídas no exterior.
De acordo com a decisão, mesmo diante da omissão do legislador nacional acerca da matéria, os estados-membros não podem editar leis instituindo a cobrança com base na competência legislativa concorrente
O referido entendimento foi ratificando, inclusive, no julgamento de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s 6828 e 6830), no final do ano passado, pelas quais o mesmo STF invalidou normas do Estados de Alagoas e de São Paulo que disciplinavam a cobrança do ITCMD nas doações e heranças instituídas no exterior.
No julgamento de 2021 (RE 851.108), ficou acertado que a decisão deveria produzir efeitos somente a contar da publicação do acórdão, ressalvando as ações judiciais pendentes de conclusão até o mesmo momento, nas quais se discuta: a qual estado o contribuinte deve efetuar o pagamento do ITCMD, considerando a ocorrência de bitributação; e a validade da cobrança desse imposto, não tendo sido pago anteriormente. Ou seja, não tem direito à restituição os contribuintes que eventualmente pagaram o ITCMD nas hipóteses reconhecidas como sendo o mesmo indevido.
Passados mais de 2 anos do referido julgamento, e diante da discussão da reforma tributária, a questão da tributação de heranças e doações de bens no exterior volta à cena e, agora, temperada pela dimensão de “espaço digital” onde ativos e fortunas vem sendo construídos.
Importante esclarecer, primeiramente, que o direito à herança em si não está em discussão no texto-base do Congresso, pois esse direito encontra-se inserido em uma cláusula pétrea do texto constitucional, cuja característica essencial é ser imutável e imune a qualquer alteração, especialmente no sentido de extingui-lo.
De outro lado, há uma real discussão na Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 45/2019) sobre as mudanças no ITCMD, prevendo que, em se tratando de herança de bem fora do Brasil, o imposto poderá ser cobrado pelo estado onde a pessoa falecida tinha domicílio. Caso tivesse domicílio no exterior, o ITCMD caberá ao estado onde tiver domicílio o herdeiro ou legatário.
Interessante notar que o texto da reforma, nesse ponto, caminha no sentido de sujeitar à tributação os bens físicos e corpóreos que se encontrem no exterior – como já o faz com relação aos que se encontram no território brasileiro – mas nada especifica quanto ao chamado “patrimônio digital”
Músicas, livros, fotos, perfis em redes sociais e contas de dados na nuvem são bens digitais comuns. No metaverso, outras relações digitais e ativos com valor econômico já fazem parte da vida, como criptomoedas, espaços e NFT’s. Logo, discussões sobre a sucessão hereditária (e também a doação) desse patrimônio devem ganhar cada vez mais destaque.
O primeiro desafio será definir se os bens digitais integram o todo da herança, sobretudo se houver conteúdo econômico, e devem ser partilhados entre os herdeiros. Há visões, de outro lado, no sentido de que os bens digitais não integrariam na medida em daria aos herdeiros acesso indevido a dados particulares do falecido, violando seu direito à intimidade.
Na ausência de lei sobre sucessão de patrimônio digital, as discussões já pipocam no Judiciário, mas os precedentes ainda são poucos, há julgados divergentes e muita insegurança no trato da matéria, especialmente quanto à efetivação das decisões – quaisquer que sejam elas – quando esses bens estiverem no ciberespaço, e sob a guarda e responsabilidade de um indivíduo estrangeiro, como o são muitas das plataformas de serviços on-line.
As soluções de planejamento patrimonial desses ativos, exatamente por conta dessa insegurança, serão desafiadoras. Por exemplo, um testamento pode regular a destinação de bens digitais para evitar discussões e cumprir a vontade do falecido, garantindo a sucessão ou protegendo acesso a dados privados. Contudo, será um enorme desafio prever como se dará a efetivação da vontade do testador quando uma plataforma estrangeira tiver de cumprir uma ordem dada por um tribunal brasileiro.
E, como não poderia ser diferente, a herança digital também pode – muito provavelmente terá – implicações fiscais.
Retornando à questão da incidência do ITCMD, é importante lembrar que podem ser tributados bens e direitos que tem valor econômico e não são personalíssimos. Nesse sentido, criptomoedas, perfis “milionários” e todo tipo de conteúdo que constitui o “capital”(ou patrimônio) digital do indivíduo, certamente não deverão ficar fora do radar do Fisco.
Por fim, considerando-se a hipótese que tais bens estejam localizados no exterior, e a sucessão deles diga respeito a indivíduos que tenham domicílio no Brasil, novas questões e desafios poderão surgir, fazendo que o planejamento patrimonial que envolva esse patrimônio seja ainda mais desafiador e complexo.
Eduardo Pires