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Em tempos de crise econômica, facilitar o processo de regularização da posse e da propriedade de imóveis urbanos, além de garantir a efetivação do direito à moradia, pode democratizar o acesso ao mercado imobiliário àqueles que não participam dele como investidores e que não detenham o poder econômico.
Conforme levantamento de 2021 do CEM (Centro de Estudos da Metrópole), da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), a verticalização na cidade de São Paulo experimenta um novo boom, na medida em que apartamentos já ocupam área construída maior que a de casas.
Segundo reportagem da Folha de SP do último dia 25 de janeiro, em 2000, a área construída de casas era de 158,4 milhões de m², enquanto a de apartamentos, 104,2 milhões de m². Vinte anos depois, apartamentos ocupam 190,4 milhões de m² e casas, 183,7 milhões de m².
É maior diferença desde 2016, ano em que apartamentos apareceram pela primeira vez à frente nesse quesito.
Para a urbanista Raquel Rolnik, professora da USP, o pós-pandemia trará a maior crise de moradia da história da cidade, uma vez que a queda de renda da maioria da população, o desemprego e a miséria aumentaram, ao mesmo tempo que a cidade está vivendo um dos maiores booms imobiliários da sua história.
Ou seja, exatamente no momento em que há menos gente com capacidade de comprar um espaço, esse está ficando mais caro que nunca.
Diante do cenário traçado, é inevitável compreender que as disputas pelo efetivo uso desse enorme acervo imobiliário, especialmente sob perspectiva de que a questão da moradia (e da posse) extrapolam a da propriedade, tenderá a ficar cada vez mais acirrada.
Se é verdade que a questão fundiária no Brasil é um tema absolutamente complexo e espinhoso, e que faz parte da estrutura de desigualdade social que nos acompanha desde sempre, também é inegável que os conflitos pela ocupação do espaço urbano passam pela necessidade de regulação e regularização dos títulos de propriedade.
Mais do que nunca, será fundamental que a lei simplifique e crie alternativas práticas e rápidas, pelas quais a posse e a propriedade de imóveis possam ser regularizadas de modo eficiente, definitivo e seguro, seja como medida de proteção do direito à moradia digna, ou mesmo democratizar o acesso e participação ao mercado imobiliário, inclusive sob o aspecto econômico.
Previsto na lei desde a vigência do Estatuto da Cidade, a usucapião coletiva, por exemplo, ainda está muito longe de alcançar seu real objetivo frente ao potencial que ostenta para tanto.
De acordo com a lei, os núcleos urbanos informais existentes sem oposição há mais de cinco anos, e cuja área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor são suscetíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Isso significa, na verdade, que ocupações coletivas, que invariavelmente começam irregulares, podem ser regularizadas por meio de usucapião, pelo qual se dará aos novos proprietários, o título jurídico em regime especial de condomínio e, por consequência, a possibilidade deles disporem e se beneficiarem economicamente do imóvel.
Não menos importante, a usucapião individual, seja para regularização de posse iniciada por falecimento de familiar cujo inventário não foi providenciado; ou de imóvel adquirido por contrato não registrado e a respeito do qual haja alguma dificuldade em obrigar o vendedor a dar escritura definitiva, é instrumento essencial de regularização imobiliária.
Considerando que a lei prevê que a usucapião pode ser requerida em processo extrajudicial, que tramita perante o cartório de registro de imóveis, seria rigorosamente necessário que o acesso a esse instrumento fosse facilitado àquele que pretende utilizá-lo – porque assim a lei o permite – para obter regularização da posse mantida sobre o imóvel.
Contudo, a prática tem demonstrado indesejável resistência por parte dos oficiais registradores em admitir a tramitação de pedidos extrajudiciais, geralmente sob justificativas que, a rigor, não encontram amparo na lei.
Há pouco mais de um mês, tivemos extinção de um pedido de usucapião extrajudicial sob o fundamento de que o imóvel poderia ter sido objeto de inventário, o que, em tese, impediria o prosseguimento do pedido de usucapião que, nesse caso, não poderia substituir o inventário.
Em procedimento de dúvida, por outro lado, assim entendeu a 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo:
“Por primeiro, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa. Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.”
Neste sentido, decidiu o Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível nº 1004044-52.2020.8.26.0161, com relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ricardo Anafe (destaque nosso):
"Usucapião Extrajudicial – direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos – possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo recusa indevida quanto ao processamento do pedido – dúvida improcedente –Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião Extrajudicial".”
Ora, é justamente o fato do individuo ter a posse, pelo tempo que a lei prevê, assim como os demais requisitos, que autoriza que possa ele obter a regularização do imóvel mesmo sem submetê-lo a inventário ou resolver dívidas anteriores e que não lhe dizem respeito.
A detenção da posse, desde que qualificada para a usucapião, e independentemente de existirem outros meios de regularização do imóvel, é que deverá ser o principal ponto a ser enfrentado, sob pena de ser a usucapião extrajudicial, enquanto instrumento de atribuição de regularidade dominial, subaproveitada e inócua, desviando-se do propósito pela qual foi concebida, especialmente em época em que se faz ainda mais importante facilitar o acesso e regularização da posse e da propriedade urbana.