As novas regras de tributação de investimentos no exterior
O suposto caráter corretivo de distorções que se vendeu para o grande público não resiste, porém, a uma análise mais detalhada de uma série de incongruências que o legislador ordinário deixou passar despercebido em nome de prioridades arrecadatórias e acordos políticos que a seguir serão examinadas.
Violação ao princípio da realização
O principal ponto que se deve assinalar diz respeito à inobservância do princípio da realização que delimita o fato gerador do imposto de renda e está assim formulado no artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN):
Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
§ 1o A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.
§ 2o Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo.
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Ora, ao prever que o contribuinte pessoa física residente no Brasil, detentor de participações em sociedades e outras entidades, personificadas ou não, incluídos fundos de investimento e fundações, domiciliados no exterior, esteja obrigado a apurar o lucro dessas entidades pelo regime de competência e recolher imposto anualmente, independentemente de sua distribuição, é indiscutível que a lei ordinária está tributando uma renda jurídica e economicamente indisponível, em frontal violação aos limites impostos pelo CTN, norma com natureza de lei complementar.
Muitos dirão que a nova lei teria amparo no § 2° do artigo 43 e se aplicaria a lucros apurados por entidades domiciliadas em países de tributação favorecida ou beneficiárias de regime fiscal privilegiado. A excepcionalidade da medida se justificaria pelo seu caráter de norma antielisão, dissuasiva de um eterno diferimento da distribuição dos lucros pelo contribuinte controlador, seguindo a linha de argumentação adotada pelo ministro Joaquim Barbosa no julgamento da ADI nº 2.588/2001, utilizada como fundamento para sustentar a constitucionalidade parcial do artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001.
Sucede, porém, que a obrigatoriedade de adoção dos critérios de contabilização da legislação comercial brasileira para as entidades domiciliadas em jurisdições dessa natureza, aliada à teimosa rejeição pelo Fisco das propostas de emenda que davam a opção de se fazer com que as variações positivas ou negativas das marcações a mercado dos ativos financeiros fossem apenas registradas nos balanços das empresas quando da liquidação das operações [1], irá levar inexoravelmente à tributação de lucros fictícios, não realizados em termos de caixa para os sócios pessoas físicas, em gravíssima violação à capacidade econômica dos contribuintes titulares das entidades.
Com efeito, um contribuinte que detenha em sua entidade uma carteira de investimentos com, por exemplo, ações cotadas em bolsa que tenham variações positivas, mas que não foram vendidas ao final do exercício, irá se ver obrigado a pagar impostos sobre lucros não realizados e, caso essas ações, no ano seguintes se desvalorizarem, terá sofrido perdas que não poderão ser compensadas com o imposto já pago no ano anterior. Essa problemática irá ocorrer com quaisquer ativos que tenham que ser marcados a mercado, como, por exemplo, cotas de fundos de investimento, em que consistem a generalidade dos investimentos. Ora, se o objetivo da lei era submeter a imposto as aplicações financeiras dos investidores no exterior, esse imposto só deveria incidir sobre as aplicações realizadas e não sobre meras valorizações virtuais e erráticas dos bens e direitos que compõem a carteira de investimentos da entidade.
Nem se diga que a lei teria resolvido essa problemática ao conferir aos contribuintes a opção de, alternativamente, declarar os bens, direitos e obrigações detidos pela entidade controlada, direta ou indireta, no exterior como se fossem detidos diretamente pela pessoa física.
Ora, o regime alternativo é mal formulado, extremamente complexo, trabalhoso, além de draconianamente irrevogável e irretratável por todo prazo que o contribuinte detiver aquela entidade controlada no exterior, o que obriga o particular a uma verdadeira escolha de Sofia às escuras.
Isso porque a lei exige que o contribuinte substitua na sua declaração a participação detida na entidade pelos bens e direitos subjacentes, alocando todos os ativos, considerada a proporção do valor de cada bem ou direito em relação ao valor total do ativo da entidade, em 31 de dezembro de 2023. Pergunta-se, desde já, o que será o “valor total do ativo da entidade”? Será o valor do investimento registrado na declaração do contribuinte? Os ativos financeiros passarão a ter um custo como se fossem detidos pela pessoa física? Então não é uma alternativa ao regime geral, mas uma distorção total e absoluta, que impede o contribuinte de adotar plenamente o regime de dedução de custos e despesas efetivamente incorridos ao nível da empresa, para passar a declarar os ativos como se fossem detidos diretamente pela pessoa física a um custo histórico da empresa, por vezes muito baixo.
Trata-se de uma não alternativa, feita apenas para dar uma falsa impressão de que há solução, quando o certo e equilibrado seria permitir uma apuração opcional pelo regime de caixa, como sucede no plano interno no lucro presumido.
Arbitrária discriminação de rendas passivas
Acresce que o novo regime não se limita às entidades domiciliadas em países de tributação favorecida ou beneficiárias de regime fiscal privilegiado, caso em que o discrímen assentaria em critérios adequados. A nova legislação determina que o regime de tributação automática de lucros seja aplicado igualmente a quaisquer sociedades que apurem renda ativa própria inferior a 60% (sessenta por cento) da renda total, critério que se nos afigura arbitrário e contrário ao princípio da igualdade, tal como expresso na regra da proibição do arbítrio (Willkülverbot) formulada na doutrina alemã e, defendida, entre nós, por Bandeira de Mello [2] e Humberto Ávila. [3]
Não se nos afigura razoável atribuir um percentual de “passividade” dos rendimentos, para exclui-los de um regime de tributação “normal” de dividendos que seria aplicável no momento de sua distribuição, para submetê-los à automaticidade, apenas porque a empresa seria titular de propriedade intelectual que lhe assegure o recebimento de royalties pelo uso de marcas ou pelo licenciamento de direitos ou, ainda, de receitas de locação de equipamentos industriais, plataformas de petróleo ou embarcações, por exemplo. Nada disso retira o caráter empresarial da atividade econômica desempenhada que justifique a discriminação adotada para tributar de modo automático seus lucros não distribuídos. A ausência de qualquer vínculo de pertinência lógica que justifique a diferenciação do regime jurídico revela a falta de razoabilidade do critério de discriminação legal.
Assim, de acordo com tal norma, contribuintes sócios de empresas domiciliadas em países de tributação normal, como Espanha, Portugal, França, por exemplo, desde que tenham receitas ditas ativas inferiores aos patamares em causa, estarão obrigados a tributar os lucros de referidas empresas à alíquota de 15%, mesmo que elas não os tenham distribuído.
Incompatibilidade com os tratados contra a dupla tributação
Tal norma, além de arbitrária, é indiscutivelmente incompatível com as disposições do artigo 7º dos tratados contra a dupla tributação que, como se sabe, conferem competência tributária exclusiva ao país de residência da empresa para tributação dos seus lucros.
Trata-se de discussão debatida em inúmeros processos, tanto na esfera administrativa, quanto no âmbito judicial, sendo o mais emblemático o leading case julgado pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.325.709-RJ (“Caso Vale”), em que ficou assentado que “no caso de empresa controlada, dotada de personalidade jurídica própria e distinta da controladora, nos termos dos Tratados Internacionais, os lucros por ela auferidos são lucros próprios e assim tributados somente no País do seu domicilio; a sistemática adotada pela legislação fiscal nacional de adicioná-los ao lucro da empresa controladora brasileira termina por ferir os Pactos Internacionais Tributários e infringir o princípio da boa-fé nas relações exteriores, a que o Direito Internacional não confere abono”.
Aplicando o mesmo raciocínio, mutatis mutandis, a exigência de uma tributação junto ao controlador pessoa física sobre os lucros não distribuídos apurados pela controlada tem o mesmo significado de tributar no Brasil, junto ao sócio pessoa física, os lucros de uma sociedade estrangeira cuja competência tributária foi reconhecida pelo tratado contra a dupla tributação em termos exclusivos para o seu país de residência.
Note-se, ainda, que aqui o argumento da equivalência patrimonial utilizado para defender a compatibilidade do regime de tributação automática da MP 2.158-35/2001 [4] com os tratados já não pode ser invocado como fez o Fisco em matéria de pessoas jurídicas, posto que, como é evidente, não há que se falar em equivalência patrimonial para as pessoas físicas.
Mas a incompatibilidade não se limita ao artigo 7º.
A tributação automática dos lucros não distribuídos é ainda incompatível com o artigo 23 dos tratados que consagram o método da isenção em matéria de dividendos, como é o caso das convenções com a Espanha, Áustria, Índia e Equador. É que a adoção desse método como medida para eliminar a dupla tributação tem como consequência reconhecer competência tributária exclusiva para o país da fonte pagadora, isto é, o país de domicílio da sociedade que apura e distribuí o lucro, e a impossibilidade de o Brasil taxar os dividendos provenientes daquelas jurisdições, pois isentará de imposto tais rendimentos, eliminando a dupla tributação. Assim, mesmo que se admita que o objeto da tributação pela lei interna brasileira seria um dividendo ficto e não o lucro apurado e não distribuído, o certo é que, no caso dessas jurisdições, a lei brasileira não será aplicada em decorrência da consagração do método da isenção.
O novo regime legal também é obstado pelas disposições expressas dos tratados com a Dinamarca, Noruega e República Tcheca e Eslovaca, onde existem cláusulas proibindo a tributação de lucros não distribuídos, in verbis:
“5. Os lucros não distribuídos de uma sociedade anônima de um Estado Contratante cujo capital pertencer ou for controlado, total ou parcialmente, direta ou indiretamente, por um ou mais residentes de outro Estado Contratante não são tributáveis no último Estado.”
Ou seja, em referidos tratados a norma legal é derrogada pela disposição convencional que será inaplicável a qualquer entidade domiciliada na Dinamarca, Noruega, República Tcheca e Eslovaca, mesmo que a renda ativa seja inferior aos patamares exigidos pela lei, pois o tratado proíbe peremptoriamente a tributação de lucros não distribuídos como está fazendo o Projeto de Lei 4.173.
Inconstitucionalidade da tributação “per saltum”
Também gravíssima é a distorção que a nova lei causa ao exigir a tributação per saltum, isto é, que o contribuinte apure os resultados das entidades de forma individualizada, em balanço anual da controlada no exterior, com exclusão dos resultados da controlada direta ou indireta.
Como já lecionou Alberto Xavier em matéria da legislação aplicável às pessoas jurídicas (Lei n.º 12.973/2014), “a tributação dos lucros das controladas indiretas como se diretas fossem, ao arrepio dos caminhos traçados pelo Direito Privado (subir degrau a degrau, a escada das participações societárias), conduz à imputação (e consequente tributação) de lucros que poderão nunca ingressar efetivamente no patrimônio da controladora brasileira” [5].
Ora, o controlador pessoa física jamais poderá distribuir para si o lucro de uma controlada indireta se a controlada direta tiver perdas que absorvam esse lucro. Ao proceder dessa forma, o Brasil terá tributado antecipada e definitivamente um lucro que jamais poderá vir a ser distribuído para o sócio pessoa física, em total e absoluta violação, uma vez mais, do mais básico dos princípios que regem a tributação da renda.
Outros aspectos e considerações finais
Há ainda aspectos importantes da legislação que se nos afiguram problemáticos, especialmente a revogação da isenção da tributação da variação cambial de bens adquiridos com rendimentos recebidos originariamente em moeda estrangeira, isenção que, na verdade, se justificava pela ausência de um custo de aquisição da moeda estrangeira, eis que nesses casos não houve uma operação de câmbio prévia– venda de moeda nacional e compra de moeda estrangeira — suscetível de dar origem ao custo e, por conseguinte, de um ganho cambial tributável na realização da operação de retorno do investimento. Assim, a tributação que se pretende doravante se nos afigura iníqua e excessiva.
Por fim, mais um tema que deve ser aprofundado é a sistemática que se adotou para a tributação dos rendimentos percebidos por estruturas formadas ao abrigo de instrumentos de trusts, especialmente os de natureza irrevogável, que merecem estudo detalhado, mormente nos casos, assaz frequentes, em que os beneficiários, muitos menores de idade ou portadores de necessidades especiais, desconhecem sua condição jurídica de potenciais receptores de distribuições de benefícios. Trata-se, como se vê, de um modelo novo de tributação que traz uma série de desafios e requer um período de adaptação e diálogo institucional, para que se possa chegar a soluções de consenso adequadas, compatíveis com os acordos internacionais e que atinjam a renda efetivamente realizada pelos contribuintes face à natureza dos ativos financeiros objeto dos investimentos no exterior.
Fonte: Consultor Jurídico