Um levantamento feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico aponta que em nove estados já existem leis — estaduais ou municipais — que equiparam os empréstimos concedidos pelos bancos sem a anuência do correntista a “amostras grátis”, afastando, assim, a obrigação do consumidor de devolver esse dinheiro.
Essas normas são sustentadas por uma interpretação do parágrafo único do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor que diz que produtos enviados sem a concordância do comprador devem ser considerados amostras. O texto do CDC, no entanto, diz respeito a serviços e produtos, e não a dinheiro — por isso há uma discussão sobre a legalidade dessa intepretação.
Esse movimento começou em Santa Catarina, onde quase uma dezena de municípios já aprovou normas do tipo. No ano passado, o tema avançou e chegou a cidades paulistas, como Americana e Guarujá, e às capitais João Pessoa e Recife.
Além disso, cidades do Rio Grande do Sul, além das Assembleias Legislativas de Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro, também têm leis nesse sentido já aprovadas ou em tramitação. Nos estados, Minas registra a situação mais avançada. A norma foi aprovada, mas o governador Romeu Zema (Novo) a promulgou com veto ao artigo sobre as amostras grátis em empréstimos. Ainda não há data marcada para que esse veto seja analisado na Assembleia.
O objetivo dessas normas, afirmam seus criadores, é coibir o lançamento nas contas dos correntistas de empréstimos consignados que não foram solicitados, seja por equívoco ou por fraude. A principal justificativa é que esse tipo de prática cresceu exponencialmente nos últimos anos.
Contra-ataque
Os municípios de Tubarão e Blumenau, em Santa Catarina, foram precursores e influenciaram várias outras cidades do país. E a norma de Tubarão já gerou um contra-ataque: uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif) para pedir a declaração da inconstitucionalidade da lei. O motivo alegado: a norma viola o pacto federativo, posto que envolve o sistema de crédito do país, cuja regulação é de competência exclusiva da União. A ação está sob a relatoria do ministro Luiz Fux.
Em outubro, o Banco Central foi incluído como amicus curiae (amigo da corte) no processo, e Fux decidiu que a ação será julgada diretamente no Plenário, dada sua relevância. Em dezembro, a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União se posicionaram a favor da ADPF, ou seja, pela declaração da ilegalidade da lei de Tubarão.
Tanto a AGU quanto a PGR alegaram que a norma — e, por analogia, todas as outras sobre o mesmo tema — diz respeito a obrigações, política de crédito e relações contratuais, assuntos que só podem ser regulados pela União. O próprio Banco Central emitiu parecer afirmando que “houve usurpação da competência da União para legislar”.
No documento acoplado ao processo, o procurador-geral do BC, Cristiano Cozer, sustentou que “a norma impugnada não se resume a usurpar a competência legislativa da União, mas vai além: se contrapõe às normas já existentes no arcabouço normativo, a saber, a existência de previsão pelo Código de Defesa do Consumidor e Código Civil, que, por sua vez, já versam sobre enriquecimento ilícito, repetição de indébito e lesões ao consumidor, sendo, além de inconstitucional, desarrazoada e desnecessária”.
Outra instituição que acompanha de perto a situação, tanto por agenda própria quanto pela dos associados, é a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). À ConJur, a entidade afirmou que as leis são inconstitucionais porque tratam de “matérias de Direito Civil, política de crédito e normas gerais de consumo, além de ferirem outros diversos preceitos constitucionais, como o direito de propriedade”.
Ainda que a norma seja vista como de proteção ao consumidor — e as cidades que aprovaram leis nesse sentido tiveram apoio dos Procons locais — Luiz Orsatti Filho, advogado e diretor do mais robusto órgão consumerista brasileiro, o Procon de São Paulo, afirmou à ConJur em dezembro que “em um primeiro momento, não é possível vislumbrar (empréstimo sem autorização) ser uma amostra grátis”.
“É uma questão que a gente precisa aprofundar, delinear muito bem os fatos, porque as consequências, principalmente numa sociedade de consumo em massa, seriam muito complicadas, inclusive para o próprio sistema financeiro.”
Apropriação indébita
Advogados consumeristas ouvidos pela ConJur afirmam que, além de temerárias, as leis ainda podem abrir exceções para apropriação indébita e enriquecimento ilícito. Além disso, uma das principais justificativas dos legisladores para a aprovação dessas normas — a de que se trata de uma questão de natureza local — não se sustenta, tendo em vista que a organização normativa do sistema financeiro brasileiro é federal.
Como é de praxe em leis de abrangência municipal, elas dizem respeito, textualmente, aos correntistas que têm domicílio ou residem na cidade, o que vai ao encontro do ordenamento sobre as instituições financeiras do país.
Essas normas, segundo a advogada Tenylle Pessoa Queiroga, do escritório Serur Advogados, “não encontram justificativas em peculiaridades locais e não podem ser tidas como exclusivamente de interesse local — muito menos naquilo que destoam da legislação federal.”
“Esse tipo de prática pode ensejar o enriquecimento ilícito, uma vez que o instituto da amostra grátis consiste em uma pequena porção ou fragmento de produto ou serviço para que o consumidor possa ter conhecimento sobre ele, sem que lhe cause enriquecimento. Ou seja, essa distribuição gratuita visa a conferir ao possível cliente a oportunidade de conhecer o produto antes de efetuar a aquisição, o que não é o caso.”
Para ela, a despeito de dar a impressão de fortalecimento do CDC, esse tipo de norma viola e contraria o código, “e ainda estabelece a presunção de má-fé”.
Eduardo Terashima, sócio de contencioso do NHM Advogados, diz que o Judiciário tem entendimentos distintos sobre o tema, mas que é “importante considerar que há outras formas de reparação (ao consumidor), como, por exemplo, a condenação por indenização em danos morais, repetição em dobro de eventuais outros descontos a depender da análise do caso concreto”.
“A percepção é que o STF, em princípio, analise o caso de forma sistêmica, sopesando os argumentos. Mas parece que os pontos expostos na ADPF 1038 são pertinentes, uma vez que, de fato, parecem envolver questões atinentes ao Direito Civil e a políticas de concessão de crédito.”
As normas aprovadas ainda podem levantar questões éticas porque podem “criar uma exceção à regra geral de apropriação indébita, dependendo da interpretação específica da legislação e dos tribunais, causando ainda mais distorção aos institutos legais”, segundo Arthur Longo Ferreira, sócio do Henneberg, Ferreira e Linard Advogados.
“Essa definição automática de qualquer depósito não autorizado como ‘amostra grátis’ pode levantar outras questões jurídicas, pois poderia representar uma inversão do ônus da prova”, diz ele, levando em consideração que, nesses casos, caberia ao banco afirmar que não agiu de má-fé.
Fonte: CONJUR