O que não falta no Brasil são trabalhadores. São 108 milhões de pessoas, com mais de 16 anos, aptas a pegar no batente. Pode até não faltar trabalho para tanta gente, o que está em falta, cada vez mais, são empregos. Desta massa de gente trabalhadora, 44 milhões têm trabalho formal, com carteira assinada ou com um contrato de trabalho. Outros 40 milhões estariam na informalidade, ou seja, não têm nem contrato nem o CNPJ de um suposto empreendedor, mas dão o duro fazendo bicos ou vivendo de expediente. Os simplesmente desempregados estariam em torno de oito milhões. Perpassando todos estes grupos haveria ainda 25 milhões de trabalhadores por conta própria, sejam eles autônomos, empresas unipessoais ou outro tipo de trabalhador sem uma relação regular de emprego.
Todos estes dados são do IBGE e estão relacionados tanto ao mercado de trabalho real existente hoje no Brasil quanto à principal matéria jurídica que está sendo discutida na Justiça hoje, que é a relação de trabalho ou o vínculo de emprego. Os números às vezes soam contraditórios, mas a explicação é que as situações de trabalho e emprego são muito voláteis e volúveis e muitas vezes se sobrepõem.
O Brasil conta, desde 1943, com uma Consolidação das Leis do Trabalho. Embora seja apenas um Decreto, que recebeu o número 5.452/1943, trata-se de um autêntico código trabalhista, e foi por esse instrumento que se consolidou a política pública das relações entre o trabalho e o capital no país. Ao longo dos anos, a norma passou por sucessivas reformas, com acréscimos e cortes que a transformaram contínua e incessantemente. Mas foi ali que se instituíram e se garantiram direitos como o salário-mínimo, a jornada de trabalho, férias, décimo-terceiro, descanso semanal remunerado, etc.
Essa legislação foi criada e se consolidou de forma paralela com o processo de industrialização do país, que tem como marco inaugural a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941, dois anos antes da criação da CLT. Pode-se dizer que a indústria e a classe trabalhadora no Brasil nasceram e cresceram juntas. E juntas estão vivendo uma crise profunda e da qual nunca sairão com a força que tiveram um dia.
Além da revolução tecnológica que substitui trabalhadores por máquinas, também a reconfiguração geopolítica do trabalho, imposta pela globalização da economia, ajuda a explicar o encolhimento dos postos de trabalho da indústria. A concentração da atividade industrial na China, provocada em grande parte pelo menor custo da mão de obra local, gerou um processo de desindustrialização nos países antes ditos industrializados do Ocidente. O Brasil, mesmo não sendo tão industrializado assim, sofreu as consequências. Em todos esses países, notou-se uma super expansão do setor de serviços. E os empregos acompanharam esse movimento de substituição de atividades. No Brasil a indústria contribui hoje com 20% na formação do PIB e responde por 13% dos empregos, enquanto os serviços, incluindo comércio, representam 59% do PIB e 54% dos empregos.
Neste redemoinho de eventos adversos, a legislação trabalhista também está em crise. Mesmo com a resistência do poder econômico, a CLT conseguiu dar conta do recado de levar civilidade ao ambiente de trabalho no país. Mas já não consegue resistir ao imperativo das mudanças. A reforma trabalhista de 2017, no governo do presidente Michel Temer, promoveu mais de uma centena de alterações em seu texto – a maioria delas flexibilizando regras de proteção ao trabalhador. Flexibilização é termo utilizado pelos otimistas. Os pessimistas falam em precarização das condições de trabalho. “O mundo do trabalho mudou muito”, diz Sérgio Nobre, presidente da CUT. “A CLT ficou insuficiente para compreender todas as formas de trabalho que foram surgindo. E os trabalhadores que ficaram fora da CLT foram sendo precarizados. E a chamada reforma trabalhista de 2017 precarizou também o trabalho dentro da CLT.”
O resultado é que o mercado de trabalho, hoje, vive à margem da CLT. Segundo o IBGE, das 100 milhões de pessoas ocupadas hoje, 39 milhões estão na informalidade. Não suportam o ônus de pagar impostos, mas não desfrutam de nenhum bônus social que a condição de trabalhador lhes poderia assegurar no presente e no futuro, já que nunca terão direito a aposentadoria. Só estão melhores – se é que não integram também essa estatística – dos que os oito milhões de desempregados.
Além dos 37 milhões de trabalhadores com carteira assinada – aos quais se somam os nove milhões de funcionários públicos estatutários e contratados – e os oito milhões de desempregados, temos uma grande massa de gente trabalhando, sob os mais diferentes e inovadores tipos de relação de trabalho.
Uma das formas pioneiras de rompimento do vínculo de trabalho adotado largamente no Brasil é a terceirização. Para a presidente da Anamatra e juíza do Trabalho em Pernambuco, Luciana Conforti, foi a terceirização que abriu a porteira por onde passaram todas as formas de precarização trabalhista. O IBGE diz que havia 4,3 milhões de trabalhadores terceirizados no país, todos com carteira assinada, diga-se de passagem. Já a CNI, Confederação Nacional da Indústria, afirma que 80% das empresas contratam algum tipo de mão de obra terceirizada. O setor público é o maior usuário de mão de obra terceirizada.
Para o trabalhador, o lado fraco da terceirização é que ele trabalha para um patrão e recebe o salário de outro, suportando a insegurança que esta duplicidade de comandos e responsabilidades pode acarretar. Além disso, é voz corrente que o terceiro trabalha mais e ganha menos do que o contratado. Em 2021, ao julgar o RE 635.546, o STF firmou a seguinte tese de repercussão geral: “A equiparação de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratar de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas.” Em 2017, a Lei 13.429 liberou geral em matéria de terceirização, acabando com a restrição, prevista na Súmula 331 do TST, que considerava legal apenas a terceirização da atividade-meio.
Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, feita pelo IBGE, mostram que, sempre, os rendimentos do trabalhador formal são superiores aos do informal. Entre os empregados do setor privado, a diferença de rendimento de quem tem carteira assinada para quem não tem é de 46%. Entre os que trabalham por conta própria, a diferença de ganho dos que têm CNPJ para os que não têm é maior do que o dobro – 125%. No setor público – sim, a pesquisa do IBGE constatou que um quarto dos trabalhadores do setor público são informais – a diferença chega a 80%.
Os dados da pesquisa permitem outras observações instigantes, considerando apenas os rendimentos dos trabalhadores regulares: um funcionário público tem rendimentos 61% maiores do que um empregado do setor privado. Já o trabalhador por conta própria formalizado tem um ganho similar ao do servidor, só 10% a menos.
Depois da terceirização, a proposta de trabalho que mais abalou as estruturas do mundo laboral foi a dos aplicativos. Com a chegada da Uber ao país, em pouco tempo estava implantado o novo sistema em que o trabalhador entra com a mão de obra, fornece as ferramentas e arca com os custos, mas não tem patrão. A pretensão da empresa proprietária do aplicativo é que todos sejam empreendedores e não empregados. Uber, no transporte urbano de passageiros, e Ifood, na entrega de comida em domicílio, logo tomaram conta do terreiro. Sem regulamentação à mão, as regras do jogo têm sido definidas pelo Judiciário. Dados de pesquisa feita pelo IBGE, divulgados em outubro de 2023, revelaram a existência de 1,5 milhão de trabalhadores por aplicativo nas áreas de transporte de passageiros (778 mil), entregas em domicílio (589 mil) e serviços gerais (197 mil). Do total, 77% eram informais e 9% empregados sem carteira assinada.
O sonho de trabalhar por conta própria já está normatizado no Brasil, desde 2006, quando foi sancionada a Lei Complementar 123, conhecida como Lei Geral da Micro e Pequena Empresa. O Microempreendedor Individual, que resultou na sigla MEI, é um trabalhador autônomo, que pode ter até dois empregados e faturar até R$ 90 mil por ano. Paga o equivalente a 5% de contribuição ao INSS e tem direito a aposentadoria, auxílio-doença e salário- maternidade. Uma das façanhas da MEI foi tirar da informalidade uma legião de donas de salão de beleza. Um de cada quatro entre os 20 milhões de CNPJ registrados na Receita Federal são MEI.
As facilidades da legislação para a abertura de empresas individuais serviram também para tirar da carteira assinada outra legião de prestadores de serviço através de um outro expediente que ficou conhecido como pejotização. Em vez de contratar um empregado pessoa física com todos os encargos inerentes, a empresa contrata os serviços de uma pessoa jurídica, sem estabelecer vínculo trabalhista com ela. Pode ser uma MEI ou pode ser uma microempresa (ME), que paga mais impostos, mas tem um teto mais alto de faturamento anual – R$ 360 mil.
Formulações inovadoras de relações de trabalho e emprego como estas são aplaudidas mesmo nos meios mais conservadores do trabalhismo, como formas de incentivar a oferta de trabalho e renda e a inclusão social e econômica. O que suscita críticas é quando estas brechas abertas na legislação trabalhista são usadas de forma fraudulenta para elidir o pagamento de encargos e fugir de responsabilidades assumidas quando se assina a carteira de trabalho de um trabalhador.
Fonte: ConJur