Ser rico não é pecado, mas também não dá direito à moleza

Reflexões sobre o debate público em torno da reforma tributária e da tributação dos ricos e super-ricos

O título da presente coluna foi inspirado em recente texto de Armínio Fraga cujo título é “Ser rico não é pecado, mas…”. No texto, o economista responde a um anterior texto de João Camargo (“Ser rico não é pecado”), que criticava duramente a proposta de tributação do capital apresentada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Já o texto de Fraga mostra a importância do debate econômico em torno de uma maior justiça tributária, concluindo que “ser rico não dá direito à moleza que existe no Brasil”.

É em torno desse debate que a presente coluna pretende traçar algumas reflexões sobre a questão da tributação em um país marcado por tanta pobreza e desigualdade, assim como por uma tributação regressiva, que onera proporcionalmente muito mais os pobres do que os ricos.

Verdade seja dita que fomos doutrinados, por décadas, a acreditar que o crescimento econômico depende essencialmente dos livres mercados, o que requer desregulação e desoneração tributária. O argumento, embora simplista, parece convincente: quanto mais dinheiro nas mãos dos empresários, mais incentivos eles terão para investir, o que levará ao aumento da atividade econômica, em benefício de todos, a partir da lógica do trickle down (quando a maré sobe levanta todos os barcos).


Ocorre que, passadas aproximadamente quatro décadas de implementação de tais políticas neoliberais, não houve o resultado positivo esperado. Como bem apontam Eric Posner e Eric Glen[1], houve a promessa do crescimento econômico, mas este não aconteceu e ainda houve o aumento da desigualdade. É por essa razão que Applebaum[2] chama os economistas que defendem tais ideias de falsos profetas, porque prometeram um crescimento econômico que simplesmente não ocorreu.

Afinal, como bem mostra Heather Boushey[3], a teoria econômica que se baseia apenas no lado da oferta, baseada na antiga Lei de Say, apresenta diversas limitações. É por essa razão que o fato de a desoneração tributária fazer com que sobre mais dinheiro para os supostos investidores não implica necessariamente que eles irão investir. Sem demanda e sem os devidos incentivos, ainda mais quando a especulação financeira e o rentismo podem assegurar maiores retornos financeiros, os mais ricos podem acumular mais dinheiro sem que isso resulte em investimento produtivo e no crescimento inclusivo da economia.

É por essa razão que precisamos nos preocupar com a desigualdade e com o papel da tributação para a sua redução. Daí por que a agenda de tributação do capital proposta pelo governo precisa ser analisada com o devido cuidado.

No entanto, todas as vezes que se pensa em fazer alguma reforma que ataque a regressividade do sistema tributário brasileiro ou que procure tributar, de forma mais incisiva, os ricos e os super-ricos, os argumentos apocalípticos de que haverá fuga de capitais e mesmo a ineficácia de tais medidas começam a dominar o debate público.

Isso é particularmente preocupante, uma vez que a defesa conservadora dos livres mercados sustenta que questões distributivas devem ser resolvidas pela tributação, razão pela qual qualquer outra área jurídica deve se omitir de nelas adentrar. Entretanto, quando se tenta resolver o problema distributivo exatamente pela tributação, as vozes conservadoras se levantam novamente, apontando críticas e obstáculos que, em última análise, esvaziam o papel da tributação para tais fins.

Cria-se, então, um perigoso cenário, em que nem mesmo a tributação pode resolver problemas distributivos. Logo, por maiores que sejam as desigualdades em nosso país e por maior que seja a regressividade do nosso sistema tributário, nada restaria a fazer pois alterações tributárias ou serão ineficazes – diante dos mecanismos, inclusive transnacionais, de que dispõem os super-ricos – ou trarão efeitos piores do que os que buscam contornar.

Obviamente que não se está aqui a defender que tais considerações sejam excluídas do debate, uma vez que precisamos estar atentos às consequências de todas as mudanças legislativas, assim como à dimensão internacional do problema, pois todos sabemos as disfuncionalidades causadas pelos paraísos fiscais. O que se procura afirmar é que até mesmo o juízo de consequências precisa ser mais cuidadoso, plural e atento à realidade.

Nesse sentido, não é preciso ser de esquerda ou mesmo alinhado com o governo para se verificar a importância da reflexão que está sendo proposta. Não é sem razão que Armínio Fraga posicionou-se expressamente nesse debate, fazendo referência em seu artigo a Angus Deaton, prêmio Nobel de Economia, que já o alertara sobre a necessidade de se corrigir as distorções fiscais do Brasil, para o fim de concluir que é exatamente isso que o projeto de Haddad pretende fazer.

No seu texto, Fraga deixa claro que “enquanto perdurarem esses tipos de brechas tributárias regressivas, qualquer proposta de ajuste fiscal vai carecer de autoridade moral por quem a propuser”, uma vez que “não é justo onerar os mais vulneráveis para beneficiar os mais ricos”.

Outro ponto fundamental do texto de Fraga é propor um contraponto ao argumento consequencialista simplista de que as soluções propostas pelo governo levarão a uma fuga de capitais do Brasil. Conclui o autor:

“A meu ver, as alíquotas propostas pelo governo e uma eventual correção dos regimes especiais do IRPJ não levarão a uma relevante fuga de capitais do país. Tal comportamento depende de um conjunto mais amplo de variáveis que influenciam os padrões de risco e retorno na economia. Dentre elas destacaria a qualidade e previsibilidade das instituições do país — econômicas, políticas e outras—, que são a fonte mais relevante dos prêmios de risco que engordam as taxas de juros.

As pressões para a preservação de todos esses aspectos altamente regressivos das regras do Imposto de Renda vão persistir, mas devem ser tratadas de forma transparente e objetiva para que não perdurem as iniquidades que hoje caracterizam o nosso sistema. Ser rico não dá direito à moleza que existe no Brasil”.

Interessante notar que o próprio Gabriel Zucman[4], provavelmente a maior autoridade do mundo sobre a questão da tributação dos super-ricos, fez questão de se posicionar expressamente no debate público brasileiro. Por meio do texto “Por que podemos e devemos taxar os super-ricos. Sonegação, evasão e concorrência fiscal são escolhas políticas, não leis da natureza”, o autor procura mostrar que o argumento de que os mais ricos deixarão o país e haverá o comprometimento do crescimento econômico é equivocado tanto do ponto de vista da história econômica global, como também sob a perspectiva de pesquisas econômicas mais recentes.

No que diz respeito à história econômica global, Zucman aponta para o fato de que investimentos públicos em educação e saúde para todos e em infraestrutura são os motores fundamentais do crescimento econômico, não sendo coincidência que os países mais prósperos recolhem uma parcela alta da renda nacional em impostos — entre 30% e 50% —, o que volta para o benefício de todos, incluindo os mais ricos.

Aplicada tal lição ao cenário brasileiro, não há como avançar em tais investimentos sem uma tributação dos mais ricos, considerando que, de acordo com as estatísticas públicas, o 1% dos indivíduos mais ricos possui mais de 45% da riqueza total. Logo, “não há como pagar pelos bens públicos que se correlacionam tão fortemente com o crescimento econômico sem fazer os ricos pagarem a sua parcela justa”, tal como ocorre no Brasil, em que temos um sistema tributário regressivo.

Daí por que, segundo Zucman, “a pergunta não deve ser se os impostos sobre os super-ricos devem ser ampliados, mas sim como fazê-lo de modo prático”. Para isso, as pesquisas econômicas modernas mostram que taxar os ricos de modo efetivo é viável desde que exista disposição política para tal. Afinal, para Zucman, sonegação fiscal, evasão fiscal e concorrência fiscal não são leis da natureza mas escolhas políticas. Daí por que os países europeus em que tais problemas ocorreram foram aqueles que permitiram que a evasão fiscal corresse solta, introduzindo brechas em seus impostos sobre a riqueza.

Para o autor, considerando que a efetividade da tributação dos super-ricos depende da incidência tanto sobre a riqueza onshore como sobre a riqueza offshore, é preciso reconhecer que há vários mecanismos para assegurar tais propósitos, até porque, desde 2018, as autoridades fiscais brasileiras têm acesso a informações consideráveis sobre as participações offshore de famílias ricas, o que torna a tributação dos super-ricos muito mais fácil do que foi no passado.

Prosseguindo no tema, Zucman afirma que mesmo a concorrência fiscal pode ser mitigada por meio de regras contra o exílio fiscal, tais como as que determinariam a cobrança de impostos de brasileiros ricos residentes no exterior por um determinado período de tempo após deixarem o Brasil, o que reduziria drasticamente os incentivos para a mudança para o exterior tão somente para se evitar os impostos.

Zucman ainda destaca que garantir que ricos paguem um montante mínimo de impostos não é uma ideia radical. Pelo contrário, tem apoio em um número considerável de economistas, políticos, personalidades e mesmo de milionários. Daí concluir seu artigo afirmando que “a hora de adotarmos um sistema tributário mais sustentável é agora, e o Brasil pode indicar o caminho”.

Para além da existência dos mecanismos de eficácia para tais mudanças, o texto de Zucman, ao destacar que estamos diante de um problema essencialmente político, aponta para algo bastante convergente com as conclusões de Joseph Stiglitz[5] sobre o tema: saber que a desigualdade hoje é um problema político e não propriamente econômico gera esperança e desespero ao mesmo tempo. Esperança porque sabemos que o atual cenário pode ser modificado e desespero porque sabemos como são difíceis tais mudanças.

Aliás, sobre Stiglitz, ele deu recentemente uma excelente entrevista reiterando que tributar os ricos é bom para a economia[6]. Segundo ele, não se trata de uma visão de esquerda, pois “o FMI, a OCDE, todos chegam à visão de que sociedades com menos desigualdade têm desempenho econômico melhor, do qual todos se beneficiarão.” Daí a sua conclusão de que sustentar que a tributação dos ricos é ruim para o crescimento econômico é argumento egoísta e sem base econômica.

Logo, precisamos levar a sério os recentes estudos que apontam para o papel da tributação na importante função de reduzir desigualdade e estimular crescimento econômico. O debate público brasileiro não pode ficar refém de “consequenciachismos” ou de opiniões enviesadas e que não dialogam com as nuances e complexidades do tema.

[1] POSNER, Eric; WEYL, Glen. Radical Markets. Princeton University Press, 2019.

[2] APPLEBAUM, Binyamin. The Economist’s Hour: False Prophets, Free Markets, and the Fracture of Society. Little Brown, and Company, 2019.

[3] BOUSHEY, Heather. Unbound: How Inequality Constricts Our Economy and What We Can Do about it. Harvard University Press, 2021.

[4] Ver ZUCMAN, Gabriel. The Hidden Wealth of Nations. The Scourge of Tax Heavens. University of Chicago Press, 2016; The Triumph of Injustic: How the Rich Dodge Taxes and How to Make Them Pay. W.W. Norton Company, 2019.

[5] STIGLITZ, Joseph. The Price of Inequality. How Today’s Divided Society Endangers Our Future. W.W. Norton Company, 2012.

[6] Folha de S.Paulo. Edição impressa de 17.09.2023. Página A19.

Fonte: JOTA

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