Código Civil e o ECA oferecem instrumentos muito úteis para resguardar os direitos e interesses de menores
No último mês, houve grande repercussão em torno de entrevistas concedidas pela atriz brasileira Larissa Manoela, detalhando o rompimento com seus pais em virtude de divergências no tocante à administração e gerenciamento dos frutos de sua bem-sucedida carreira.[1] Famosa desde os 4 anos de idade,[2] Larissa, que completou 22 anos no último 28 de dezembro, é uma das maiores celebridades da sua geração, tendo atuado em novelas, filmes e peças publicitárias, que lhe geraram ganhos patrimoniais consideráveis. Em meados de 2023, a atriz resolveu assumir o controle da própria carreira e do próprio patrimônio, até então administrados pelos pais.[3]
Os detalhes expostos nas entrevistas envolvem o uso de cachês para a constituição de sociedades empresárias em que a participação da atriz se limitava a apenas 2%, a compra de imóveis em nome exclusivo dos pais e até a necessidade de pedidos de Pix para compras de milho e sorvete na praia, tudo a indicar que a gestão dos ganhos ocorria sem a participação de Larissa, que declarou expressamente que “não sabia o que eu recebia, o que tava sendo pago”.[4] Em outra entrevista, contudo, a mãe da atriz negou as acusações formuladas pela filha, afirmou nunca ter tido qualquer interesse no seu patrimônio e disse que a atriz poderia gastar o dinheiro que recebia como bem entendesse.[5]
O rumoroso caso acabou acendendo o debate no país em torno do exercício do poder familiar – hoje, mais comumente denominado como autoridade parental –, especialmente no tocante à gestão de bens de filhos menores. Quais os limites para a atuação dos pais na administração destes bens? Como garantir que esse patrimônio seja utilizado no interesse da criança ou adolescente que se tornou fonte de renda única ou preponderante da família? Pode-se extrair deste conjunto patrimonial uma remuneração eventualmente devida ao pai ou mãe que atua como empresário do menor?
No calor da discussão, pulularam projetos de lei no Congresso Nacional, como tem ocorrido recentemente em todo grande debate que surge no Brasil. Parlamentares apressam-se, muitas vezes, em dar uma resposta a certo problema, sem explorar as potencialidades da legislação vigente. Nos referidos projetos de lei, há propostas das mais distintas: (a) introduzir no Estatuto da Criança e do Adolescente o crime de violência patrimonial contra menores, espelhando a modalidade criminosa já adotada no âmbito da Lei Maria da Penha;[6] (b) proibir a movimentação de mais que 70% dos valores recebido por crianças e adolescentes até que completem a maioridade;[7] (c) proibir que crianças e adolescentes contribuam financeiramente para rendimentos pessoais ou projetos de vida de seus responsáveis legais;[8] (d) impor ao Ministério Público a realização de auditorias regulares das receitas geradas por crianças e adolescentes;[9] (e) impor ao Ministério Público a análise obrigatória da participação de menores de idade em sociedades empresariais;[10] e (f) impor a inserção de cláusula revisional condicionada à maioridade dos filhos em negócios jurídicos firmados pelos pais no exercício do poder familiar.[11]
As propostas merecem o debate democrático no âmbito do Congresso Nacional. Parece relevante, no entanto, lembrar dos instrumentos de que o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe para proteção patrimonial dos menores de idade. No Brasil, convém recordar, os pais figuram como usufrutuários e detentores dos poderes de administração do patrimônio dos filhos sob sua autoridade parental, nos termos do artigo 1.689 do Código Civil.[12] Não são, portanto, titulares do patrimônio dos filhos, nem devem compartilhar desse patrimônio de nenhuma forma, mas apenas promover a sua administração sempre no melhor interesse da criança ou adolescente.
Também por esse motivo, o usufruto instituído pelo inciso I do artigo 1.689 do Código Civil difere do usufruto convencional.[13] Sua natureza é inteiramente peculiar, pois exercido sempre no interesse alheio, respondendo os pais pela adequada defesa e conservação do patrimônio de seus filhos. Essa intenção do legislador em preservar o patrimônio até que o filho tenha condições de administrá-lo e conservá-lo por si mesmo evidencia-se claramente na redação do artigo 1.691 do Código Civil, que impede os pais de “alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz”.
Note-se que a legislação brasileira não estabelece nenhuma remuneração aos pais pelo exercício da administração dos bens de filhos menores. Trata-se de uma obrigação legal e gratuita. Nenhuma taxa de administração ou artifício semelhante pode incidir aqui. Em caso de necessidade de uma administração em tempo integral, e caráter profissional, isso deve ser feito por meio da contratação de empresas especializadas, com real expertise neste campo de gestão patrimonial. Coisa diversa é a eventual colaboração com a carreira do menor, como acontece no caso de pais e mães que assumem a posição de empresários de seus filhos, hipótese na qual pode haver alguma remuneração, desde que compatível com os valores de mercado.
Ademais, é preciso destacar sempre a necessidade de se assegurar a progressiva participação direta do menor na gestão de seus bens, e também de sua própria carreira. A criança ou adolescente deve ser chamado a participar como sujeito, e não como objeto das decisões adotadas. Não é por outra razão que o Código Civil traz a possibilidade de nomeação, a requerimento do próprio menor ou do Ministério Público, de um terceiro como curador especial, “sempre que no exercício do poder familiar colidir o interesse dos pais com o do filho” (art. 1.692). Além disso, o instituto da responsabilidade civil permanece sempre disponível para a reparação de danos materiais sofridos pelo menor, inclusive em casos de dilapidação de patrimônio de menores em razão de administração negligente ou eivada de desvio de finalidade em favor dos pais.
Tais instrumentos aplicam-se não apenas em relação a bens e valores recebidos diretamente pelo filho, mas também a todo e qualquer rendimento proveniente de seu trabalho que seja recebido por outros meios, como sociedades empresárias constituídas para este fim. A toda evidência, a constituição de sociedades empresárias não pode servir de escudo a pais que pretendem maliciosamente invocar a lei societária para se apropriarem de forma indevida de lucros gerados pelas atividades – muitas vezes personalíssimas – de seus filhos menores.
Novos mecanismos que protejam crianças e adolescentes são sempre muito bem-vindos, especialmente diante das complexidades geradas pelas inovações tecnológicas e por novas carreiras calcadas na hiperexposição de menores – como ocorre com os chamados youtubers-mirins. Não se pode, entretanto, esquecer que o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente oferecem instrumentos muito úteis para resguardar os direitos e interesses de menores, evitando abusos e garantindo transparência e responsabilidade na gestão de seu patrimônio.
Fonte: JOTA