Adoção: Proibir escolha racial é a solução para crianças acolhidas? Requerimento da Defensoria ao CNJ pede remoção de campo sobre preferência étnica em cadastro.
No final de março, as Defensorias Públicas da Bahia e do Rio de Janeiro informaram ter apresentado requerimento ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que removesse do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) o campo sobre preferência étnica. De acordo com as instituições, a inclusão da escolha de cor, raça ou etnia é prática de racismo institucional e dificulta a adoção de crianças e adolescentes pretos e pardos. Além da remoção, as Defensorias Públicas solicitaram ainda medidas educacionais sobre adoção inter-racial.
Os dados apresentados para subsidiar o pedido já são conhecidos há anos pelo sistema de justiça: a quantidade de crianças e adolescentes aguardando adoção é muito superior ao número de adotantes cadastrados. Dados na petição informam que em janeiro de 2022 havia cerca de 3.900 crianças e adolescentes aptas para adoção, 4.758 em processo de adoção e 32.800 pretendentes para adoção.
Da leitura da petição percebe-se uma alta preocupação com a desinstitucionalização de crianças e adolescentes e os riscos da longa permanência em instituições de acolhimento, mas, de outro lado, provoca questionamentos que não foram abordados de maneira satisfatória.
Em primeiro lugar, o sistema de adoção no Brasil pode ser subdividido em três diferentes pautas ou conteúdos temáticos: a disponibilização de crianças e adolescentes para a adoção, o cadastramento de pretendentes à adoção e o processo em si de adoção.
A colocação de crianças e adolescentes para adoção pressupõe que os pais sejam falecidos ou que tenha ocorrido a prévia destituição do poder familiar. Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) exigir a destituição do poder familiar, o art. 4º da Resolução CNJ 289/2014 torna apta a criança ou adolescente cujo poder familiar tenha sido apenas suspenso em decisão liminar em juízo, o que geralmente ocorre em processos de acolhimento, medidas de proteção ou processos de destituição, conforme classificação processual do CNJ.
Nesse eixo temos o primeiro viés de racismo institucional, uma vez que mais crianças e adolescentes negros são a maioria em acolhimento institucional. O CNJ não encaminhou até a finalização deste texto dados sobre acolhimento institucional de crianças e adolescentes negros, mas no estado do Rio de Janeiro, dados do Ministério Público de 2021 revelam que das 1.369 crianças e adolescentes em acolhimento, 1.109 eram negros, o que corresponde a 81% das crianças em acolhimento em uma população média nacional de 44% de negros.
O Censo do MPRJ revela que das 1.369 crianças em acolhimento, 161 estavam aptas para adoção, das quais 143 são negras.
Os microdados do Censo não estão disponíveis para consulta pública, mas seria particularmente interessante investigar a relação entre a idade de ingresso da criança e adolescente no acolhimento, a raça, o tempo de acolhimento, existência de grupo de irmãos e prazo para colocação em adoção. Possivelmente, feita essa correlação, encontraríamos que quando a criança é mais nova, é mais rápida a colocação em família adotiva do que em comparação com crianças a partir de 7 anos de idade.
De qualquer forma, considerando que o racismo é parte estruturante do sistema social e jurídico no Brasil, é possível extrapolar essa realidade e confirmar que já na colocação em acolhimento, passo anterior à adoção, existe racismo institucional.
As Defensorias Públicas têm historicamente atuação orientada para a preservação da convivência com as famílias natural e extensa, mas chama a atenção que o elevado índice de acolhimento de crianças e adolescentes negros não tenha ganhado destaque no requerimento.
A centralidade da argumentação acabou por recair sobre aspectos relativos aos pretendentes à adoção.
De acordo com o ECA, as pessoas que tenham interesse em constituir família via adoção devem se habilitar perante a vara da infância de seu domicílio, comprovando estarem aptos para o exercício da parentalidade. Sendo aprovados no processo de habilitação, serão incluídos em cadastro até a localização de criança ou adolescente dentro do seu perfil.
Um dos problemas é que não há unicidade nos cadastros de pretendentes à adoção, porque, embora consolidados pelo CNJ, a gestão pertence aos Tribunais de Justiça.
Mais: a habilitação para adoção não tem procedimento uniformizado no país, sendo possível que cada juízo de vara da infância estabeleça critérios próprios, desde que respeite os parâmetros mínimos estabelecidos pelo CNJ.
Dentre os critérios para habilitação está a escolha de preferência de raça, cor ou etnia. Não é, contudo, a única, uma vez que sexo, idade, opção por adoção de grupos de irmãos e conhecimento de deficiência ou doenças graves são também outros critérios de escolha na habilitação.
De todos esses parâmetros de escolha, o único que foi questionado pelas Defensorias foi raça, cor ou etnia, nada mencionando sobre a ilegalidade ou não de escolha de sexo ou de crianças com ou sem deficiência, muito embora essas pautas também sejam objeto de tratados internacionais de direitos humanos.
Apesar disso, a preocupação das Defensorias Públicas faz sentido, pois há trabalhos publicados confirmando maior dificuldade de adoção de crianças e adolescentes negros, especialmente a partir dos 7 anos de idade ou já na adolescência, como esclarecem Sandro Pitthan Espíndola, Marcos Besserman Viana e Maria Helena Barros de Oliveira, o que revela o comportamento discriminatório social brasileiro.
Mesmo quando pretendentes à adoção afirmam que preferem não negros para que haja “melhor adaptação”, o que subjaz a esse discurso é uma forte discriminação contra crianças negras, consideradas “inerentemente viciadas” ou “com qualidades negativas intrínsecas, oriundas da família de origem”, que nada mais são do que racismo.
O requerimento institucional, contudo, passa ao largo de dois importantes debates, ainda incipientes no Brasil. Em primeiro lugar, a própria legitimidade da adoção inter-racial (ou transracial, conforme preferência de alguns pesquisadores). Nos EUA, na França e na Austrália, há fortes movimentos negros e indígenas contrários à adoção inter-racial, por considerarem que essas adoções impactam negativamente na transmissão cultural desses grupos para crianças e adolescentes.
É verdade que nos três países a quantidade de pessoas negras e indígenas é menor do que negros e indígenas no Brasil, mas a ideia de preservação de uma identidade cultural na escolha dos adotantes revela que a admissibilidade ampla da adoção inter-racial é mais complexa do que o requerimento parece crer.
Aliás, a influência da cultura comunitária em populações indígenas é fator importante na colocação de crianças em famílias substitutas, pois de acordo com os arts. 28, § 6º, e 157, § 2º do ECA é obrigatória a participação de representantes públicos federais com atribuição indigenista quando em jogo a situação de crianças indígenas.
O segundo problema é que o requerimento olha a discriminação manifestada pelo sistema judicial e pelos adotantes, esquecendo-se que existe uma criança, cujos interesses a um futuro saudável e livre de violência têm primazia. O que se pretende colocar em questionamento é se a adoção inter-racial é, de fato, sempre, a medida que atende ao melhor interesse da criança ou se há risco de revitimização ao se acreditar que a mera proibição de escolha da raça, cor ou etnia seria suficiente para superar o racismo.
Em dissertação apresentada em 2020 na Univesp, Tahina Tátila da Silva realizou entrevistas com famílias brancas que adotaram crianças negras. O objetivo da pesquisa de mestrado era observar a construção das identidades das crianças após a adoção inter-racial e conclui que a maioria das famílias não foi capaz de construir as identidades das crianças, tampouco auxiliá-las na superação das violências e/ou abandonos do passado.
O requerimento ao CNJ precisaria ser complementado com ampla discussão social e científica sobre as consequências da adoção inter-racial e quais os parâmetros em que ela pode (ou deve) ser realizada. Há que se ter cautela ao abordar casos reais de crianças e adolescentes negros, que já foram vítimas de abandono e violência e que têm potencialmente aumento do risco de nova violência.
A proposta do requerimento de capacitação racial para a adoção parece atender mais o princípio do melhor interesse, ao promover uma sensibilização sobre o sentido da adoção e de quem se pretende adotar e se afigura como uma medida com potencial de não apenas estimular mais adoções de crianças negras, como melhorar a qualidade do vínculo entre adotantes e adotados(as), cuja adaptação nem sempre é tão tranquila quando se desejaria.
Talvez o que se conclua desse requerimento é o benefício de publicizar o quanto o racismo é um elemento intrínseco ao sistema judicial, inclusive nas adoções, e propor um debate amplificado de alternativas que assegurem o direito à convivência familiar e o melhor interesse.
Fonte: JOTA