Do ‘pior aluno da escola’ ao tapa do Oscar: há limites ao direito de sátira?

Muito frequentemente, uma cena satírica é construída justamente para provocar debate. Na última semana, o ator Will Smith, acostumado a estrelar obras de ficção, tornou-se o protagonista de uma cena real que espantou o público do Dolby Theatre, na Califórnia, e milhões de espectadores em todo mundo.

Indignado com uma piada que associava sua mulher, que sofre de alopecia, a uma continuação do filme “G. I. Jane”, Smith subiu ao palco e desferiu um tapa no rosto do comediante Chris Rock, que, estarrecido, limitou-se a afirmar que aquela era “a maior noite da história da televisão”[1].

Smith, que ganhou na mesma noite o Oscar de melhor ator por sua atuação em “King Richard”, filme em que desempenha o papel de um pai superprotetor, explicou ainda no curso da cerimônia que, embora atores estejam sujeitos a ser objeto de toda espécie de comentário, era preciso proteger sua família.

Nos dias que se seguiram, Smith emitiu uma nota oficial de desculpas a Chris Rock, tornou-se alvo de uma investigação disciplinar, renunciou à sua participação na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, entidade responsável pelo Oscar, e atraiu a crítica inflamada de internautas e celebridades por seu gesto violento. O comediante Jim Carrey, por exemplo, declarou-se “enojado” (sickened) com a atitude de Will Smith e afirmou que o ator deveria ser processado[2].


No Brasil, alguns dias antes da cerimônia do Oscar, o Departamento de Proteção e de Defesa do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, havia publicado o Despacho 625/2022, determinando, cautelarmente, a suspensão imediata da “disponibilização, exibição e oferta do filme ‘Como se tornar o pior aluno da escola’, tendo em vista a necessária proteção à criança e ao adolescente consumerista”[3]. A determinação foi endereçada a Netflix, Globo, Google, Apple e Amazon, sociedades responsáveis por canais televisivos ou plataformas de streaming de vídeos.

“Como se tornar o pior aluno da escola” é uma comédia brasileira lançada em 2017 e baseada no livro homônimo escrito pelo comediante Danilo Gentili, que figura também como produtor da obra. O filme narra a história fictícia de dois estudantes que têm dificuldades de se adequar às regras da escola e decidem instaurar o caos na instituição. Em determinada cena da película, um adulto sugere aos dois estudantes que o masturbem. O filme foi classificado, à época, como “não recomendado para menores de 14 anos” e vinha sendo exibido há aproximadamente cinco anos sem grande polêmica. Todavia, uma postagem no Twitter, realizada em 13 de março deste ano, acabou deflagrando uma onda de acusações de que a obra conteria cenas de pedofilia e estimularia o assédio a menores de idade [4].

Como frequentemente acontece nesses casos, a medida adotada pelo Ministério da Justiça acabou por atrair maior curiosidade sobre o filme, que ingressou rapidamente no ranking dos filmes mais assistidos na Netflix[5]. Trata-se de um exemplo didático do chamado “Streisand effect” (efeito Streisand), expressão cunhada nos Estados Unidos após a atriz Barbra Streisand tentar remover da internet uma foto aérea de sua casa, o que acabou por deflagrar uma campanha de compartilhamento da imagem nas redes sociais[6].

Em paralelo ao aumento da procura pelo filme, o Ministério Público Federal e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) ajuizaram ações impugnando a validade do ato de suspensão[7]. Argumentaram que o Ministério da Justiça pode apenas promover a classificação indicativa do filme, ou alterar esta mesma classificação, mas não pode suspender a exibição de uma obra cinematográfica. A própria Secretaria Nacional de Justiça publicou novo despacho, por meio do qual, sem prejuízo da ordem anterior de suspensão, alterou a classificação indicativa do filme de 14 anos para 18 anos, recomendando, ainda, que somente fosse exibido após as 23h em canais de televisão aberta[8].

A Constituição de 1988 prevê expressamente a competência da União para “exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão” (artigo 21, XVI) e da legislação federal para “regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao poder público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada” (artigo 220, §3º, I). Tais preceitos revelam o caráter meramente “indicativo”, “informativo” ou “recomendatório” da atuação dos órgãos federais, sem mencionar, em qualquer caso, a possibilidade de impedir empresas privadas de exibirem determinado conteúdo.

No âmbito infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), editado em 1990, estabelece que “nenhum espetáculo será apresentado ou anunciado sem aviso de sua classificação, antes de sua transmissão, apresentação ou exibição” (artigo 76, parágrafo único). O artigo 254 do ECA tipifica como infração administrativa a conduta de “transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação”, sujeitando o infrator não apenas a “multa de vinte a cem salários de referência”, mas também à possibilidade de a autoridade judiciária “determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias”.

Em 2018, ao apreciar a constitucionalidade deste dispositivo legal, o Supremo Tribunal Federal (STF) assentou que “a classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer, informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e os adolescentes. O exercício da liberdade de programação pelas emissoras impede que a exibição de determinado espetáculo dependa de ação estatal prévia. A submissão ao Ministério da Justiça ocorre, exclusivamente, para que a União exerça sua competência administrativa prevista no inciso XVI do artigo 21 da Constituição, qual seja, classificar, para efeito indicativo, as diversões públicas e os programas de rádio e televisão, o que não se confunde com autorização. Entretanto, essa atividade não pode ser confundida com um ato de licença, nem confere poder à União para determinar que a exibição da programação somente se dê nos horários determinados pelo Ministério da Justiça, de forma a caracterizar uma imposição, e não uma recomendação. Não há horário autorizado, mas horário recomendado. Esse caráter autorizativo, vinculativo e compulsório conferido pela norma questionada ao sistema de classificação, data venia, não se harmoniza com os arts. 5º, IX; 21, inciso XVI; e 220, § 3º, I, da Constituição da República” (ADI 2.404/DF)[9].

Com base nesses fundamentos, o STF declarou a inconstitucionalidade da expressão “em horário diverso do autorizado”, constante do artigo 254 do ECA.

Como se nota, a decisão do STF, em deferência à unidade do ordenamento jurídico, conjugou o sistema de classificação das obras audiovisuais com a vedação à censura[10], prevista nos artigos 5º, IX, e 202, §2º, da Constituição[11]. Nossa ordem jurídica não admite, portanto, que, mesmo no afã de proteger crianças e adolescentes de conteúdos inadequados para a sua faixa etária, o Ministério da Justiça ou qualquer outro órgão federal determine a suspensão da exibição de conteúdo audiovisual.

O curioso é que, em absoluta conformidade com a interpretação chancelada pelo STF, a Portaria 502/2021 do próprio Ministério da Justiça, que regulamenta o processo de classificação indicativa, prevê que “a classificação indicativa tem natureza pedagógica e informativa, capaz de garantir às pessoas e às famílias o conhecimento prévio para escolher diversões e espetáculos públicos adequados à formação de seus filhos, tutelados ou curatelados” (artigo 7º). A portaria estabelece, ainda, de modo expresso, que “não é permitido à Política de Classificação Indicativa proibir a exibição de obras ou espetáculos, promover cortes de cenas ou solicitar a exclusão de conteúdos audiovisuais, nos termos do inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal” (artigo 9º).

Adicionalmente, a 4ª edição do Guia Prático de Classificação Indicativa, publicada no ano passado pelo governo federal, menciona expressamente “ato de pedofilia” como conteúdo que conduz à classificação indicativa da obra como filme “não recomendado para menores de 16 anos”. O referido Guia Prático chega a mencionar exemplos, todos bem mais explícitos que aquilo que se vislumbra na cena protagonizada pelo ator Fabio Porchat:

“A.5. NÃO RECOMENDADO PARA MENORES DE 16 ANOS
São admitidos para esta faixa etária conteúdos que apresentem:
A.5.1. ATO DE PEDOFILIA
– Violência sexual contra vulnerável (menor de 14 anos). Neste caso, não há a necessidade da consumação sexual, mas sim de qualquer ato libidinoso que envolva crianças e adolescentes nesta faixa etária.
EXEMPLO 1: um adulto comete conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso
contra criança de 11 anos, mesmo que a vítima pareça concordar com o ato.
EXEMPLO 2: um personagem se diverte ou sente prazer ao ver fotos de
crianças nuas na internet.
EXEMPLO 3: uma cena mostra um indivíduo ou grupo produzindo ou difundindo
imagens sexuais envolvendo crianças ou adolescentes”.

Nesse contexto, a tentativa de suspensão da exibição do filme, inclusive em plataformas de streaming (em que o usuário seleciona a obra a que deseja assistir), contraria não apenas a interpretação do STF, mas também diretrizes emitidas pelo próprio Ministério da Justiça no ano passado. A drástica reação do governo federal contra um filme de comédia, tal como o tapa no comediante Chris Rock na noite do Oscar, suscita, todavia, questionamentos mais amplos: por que filmes ou falas destinadas a fazer rir têm resultado no exato oposto? O que faz com que alguém se sinta ofendido com algo elaborado para ser cômico? Quando uma piada deixa de ser uma piada para se tornar ofensa à luz da ordem jurídica?

Direito de sátira é a expressão que tem sido utilizada para designar o direito de fazer humor, com base em certas pessoas ou fatos da vida real. O direito de sátira consiste, neste sentido, em uma específica manifestação da liberdade de expressão artística, intelectual e de comunicação, tutelada pela Constituição da República (artigo 5º, IX).

É evidente que o direito de sátira não pode ser usado como pretexto para a prática de atos ilícitos. Uma piada racista é racismo, e não exercício de direito de sátira. O humor não pode ser convertido em instrumento de burla à proibição da prática de atos discriminatórios, imposta pela nossa ordem jurídica. Há, contudo, exemplos mais controvertidos: a piada do comediante Chris Rock na noite do Oscar, que se vale de um efeito de uma doença sobre uma mulher para tentar fazer rir, cruza algum limite jurídico? Pode-se invocar uma violação ao direito à honra na submissão a uma exposição pública em virtude de uma condição de saúde? Nada disso justifica, naturalmente, uma agressão física, mas vozes na internet tem destacado que fazer piada com o cabelo de uma mulher, especialmente de uma mulher negra, pode exprimir, mais que mera insensibilidade, a reprodução de um padrão histórico de discriminação racial[12].

De outro lado, é certo que a retratação cômica ou satírica de mazelas sociais não deve ser enxergada como apologia, mas deve ser compreendida no contexto do importante papel que o humor desempenha como instrumento de crítica social. Uma sátira que exibe um político corrupto não é apologia da corrupção, mas exploração crítica de um problema social através da reprodução grotesca de que habitualmente se vale o humor. E o mesmo vale para outros comportamentos intoleráveis, ainda que lidem com situações extremas como o assédio sexual, inclusive em relação a alunos em escolas. Muito frequentemente, uma cena satírica é construída justamente para provocar debate ou repisar criticamente padrões de comportamento adotados na sociedade, com vistas à construção de uma realidade menos defeituosa. Castigat ridendo mores.

[1] “Oscar 2022: tapa de Will Smith em Chris Rock e outros 4 momentos marcantes da cerimônia” (BBC News Brasil, 28.3.2022).

[2] “Jim Carrey ‘sickened’ by Oscars’ standing ovation for Will Smith: ‘Hollywood is spineless’” (New York Post, 29.3.2022).

[3] A íntegra do Despacho 625/2022 pode ser acessada em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/despacho-n-625/2022-385790490

[4] “Ministério da Justiça determina remoção de filme de Danilo Gentili de plataformas” (Jota, 15.3.2022).

[5] “Após polêmica, ‘Como se Tornar o Pior Aluno da Escola’ se torna o 4º filme mais visto da Netflix” (Cinepop, 16.3.2022).

[6] “The Streisand Effect: When Censorship Backfires”, in BBC News, 15.6.2012.

[7] “MPF move ação contra remoção do filme ‘Como se tornar o pior aluno da escola’” (CNN Brasil, 18.3.2022).
Fonte: JOTA

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