O TSE e o Lollapalooza: quando a intervenção mínima vira censura

Mais uma vez, Justiça Eleitoral demonstrou inconsistência na forma como garante a liberdade de expressão. Não é de hoje que a Justiça Eleitoral enfrenta problemas com o eleitorado brasileiro. A recente decisão do ministro Raul Araújo quanto à manifestação de Pabllo Vittar durante o Lollapalooza é mais uma de um conjunto de pronunciamentos judiciais sem uniformidade aparente sobre os limites da liberdade de expressão.[1] Nesse caso, contudo, com uma dimensão perigosa de censura, uma vez que tem o potencial de suprimir a livre manifestação de pensamento de diversas pessoas.

Em 2018, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) recebeu mais de 70 ações judiciais denunciando as peças de desinformação que circularam durante as eleições presidenciais, a postura do Tribunal era assumidamente não intervencionista.[2] Olhando para o conjunto de 13 casos sobre o “kit gay”, por exemplo, notamos como os ministros do TSE defenderam ostensivamente aquilo que chamam de “princípio da mínima interferência”, justamente para evitar que a Justiça Eleitoral tolhesse o debate democrático.[3]

De acordo com os ministros, “os comentários questionados [naquele momento], por mais incisivos e provocativos que [fossem], podem ser considerados, pelo menos neste juízo perfunctório, como abrigados no âmbito do debate democrático”[4]; “a interferência desta Justiça especializada deve ser minimalista, sob pena de silenciar o discurso dos cidadãos comuns no debate democrático”[5]; e “[…] na democracia, as diferenças ressaltam por ocasião da campanha eleitoral, de modo que a crítica, mesmo provocante ou desagradável, faz parte do discurso político”[6].

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Assim, se antes havia uma grande preocupação com a circulação do maior número possível de “manifestações políticas”, por que agora declarações feitas em um festival estão sendo multadas em R$ 50 mil?

E antes que seja dito que não estamos discutindo propaganda eleitoral (porque, realmente, não estamos) e que os trechos mencionados não se aplicam, fazemos eco às declarações de outros(as) advogados(as) e do ex-ministro do STF Marco Aurélio sobre o caso.[7] A decisão parece confundir aquilo que é liberdade de expressão e aquilo que é, de acordo com o próprio TSE, hipótese de propaganda eleitoral irregular. Tenta, ainda, controlar o incontrolável, em um esforço falido de limitar discursos antes mesmo que surjam.

Portanto, o que se discute neste momento é como a Justiça Eleitoral entende aquilo que é, ou não, debate democrático. E isso não implica defender a direita ou a esquerda, mas aquilo que ainda conseguimos articular em termos de democracia. Porque é insustentável não querer intervir no maior esquema de desinformação do país, que colocou em risco direitos humanos de mulheres e pessoas LGBTQIA+ enquanto beneficiava um dos candidatos à Presidência, e, alguns anos depois, censurar o balanço de uma toalha. Existe algo, no mínimo, contraditório entre essas duas condutas.

Com essa decisão, o TSE que era antes o inimigo preferido do atual presidente da República[8] (e das pessoas que o apoiam) ampliou a sua rede de inimizades – o que, talvez, possa ser algo positivo, porque enfraquece a narrativa de que o tribunal está a serviço da esquerda. Por outro lado, é preocupante quando pensamos que as eleições presidenciais estão se aproximando e que, mais uma vez, a Justiça Eleitoral demonstrou sinais de inconsistência na forma como garante a liberdade de expressão, enfraquecendo a percepção de sua legitimidade.

Essa é uma oportunidade para pensar na forma como nos mobilizamos enquanto sociedade. As manifestações de Anitta, Lulu Santos e Emicida depois da determinação do TSE são um indicativo de que os últimos anos da política brasileira nos fizeram mais “impacientes” quando se trata da negação de direitos. Com aspas porque impaciência é certamente um eufemismo; e porque até outubro deste ano, é provável que ainda tenhamos que nos indispor várias vezes – seja com uma Justiça Eleitoral que intervém, ou com uma que se abstém.

[1] AMATO, Lucas Fucci; SABA, Diana Tognin; BARROS, Marco Antonio Loschiavo Leme de. Sociologia jurídica das fake news eleitorais: uma observação sistêmica das respostas judiciais e legislativas em torno das eleições brasileiras de 2018. Revista Direito Público, v. 18, n. 99, p. 539-564, 2021.

[2] CAMPINHO, Bernardo Brasil. Constitution, democracy, regulation of the internet and electoral fake news in the Brazilian elections. Publicum, v. 5, n. 2, p. 232–256, 2019; SANTOS, Gustavo Ferreira. Social media, disinformation, and regulation of the electoral process: A study based on 2018 Brazilian election experience. Revista de Investigações Constitucionais, v. 7, n. 2, p. 429-449, maio/ago., 2020.

[3] GIUSTI, Victor. Como se controla a desinformação nas eleições? O caso do “kit gay”. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania), Universidade de Brasília, Brasília, 2021.

[4] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Representação nº 0601654-37.2018.6.00.0000. Decisão liminar. Relator: Min. Carlos Horbach, 15 de outubro de 2018. Disponível em: https://bit.ly/2Mts8xG. Acesso em: 3 fev. 2021.

[5] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Representação nº 0601685-57.2018.6.00.0000. Decisão liminar. Relator: Min. Luis Felipe Salomão, 12 de outubro de 2018. Disponível em: https://bit.ly/3pLSjOJ. Acesso em: 3 fev. 2021.

[6] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Representação nº 0601842-30.2018.6.00.0000. Decisão liminar. Relator: Min. Luis Felipe Salomão, 27 de outubro de 2018. Disponível em: https://bit.ly/3pJYoeA. Acesso em: 3 fev. 2021.

[7] https://oglobo.globo.com/politica/juristas-veem-censura-criticam-decisao-do-tse-que-proibiu-manifestacoes-no-lollapalooza-25450964. Acesso em: 27 mar. 2022.

Fonte Jota por VICTOR GIUSTI

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