Aprovação do PLC 29/2017, em análise no Senado, beneficiará tanto segurados como seguradores. O setor de seguros e resseguros no Brasil foi um dos segmentos da economia brasileira sob supervisão estatal que mais sofreram modificações durante o governo Bolsonaro. Embalada pelos ventos da “nova” política econômica, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) e o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) aprovaram um sem-número de circulares, resoluções, além de editarem “revogaços” em série. Com suas canetas, reescreveram as regras centrais de funcionamento do sistema de seguros privados do país.
Paradoxalmente, mesmo diante do reformismo regulatório da Susep, as leis que disciplinam o contrato de seguro não avançaram. Pior, o abismo existente entre a legislação sobre os contratos de seguro e a prática do mercado de seguros não foi preenchido. O curioso dessa história é que o setor de seguros, cuja credibilidade perante a sociedade está baseada na avaliação dos riscos, no exercício da prudência e da aplicação criteriosa das leis atuariais, foi justamente tomado como balão de ensaio dos liberais de Taubaté com o consentimento de seus experientes executivos. Assim, os atores da instituição que seria a última provedora de segurança para as sociedades contemporâneas na ordem neoliberal renunciaram a uma das externalidades institucionais mais delicadas e poderosas: abdicaram da segurança jurídica.
Entorpecidos pelas promessas de triunfo dos liberais ocasionais, os executivos do mercado avalizaram o projeto de reforma regulatória por verem nela um atalho à revisão do Código Civil. Protagonistas da própria tragédia, acreditaram profundamente que o jeitinho funcionaria.
Na prática, a Susep conduziu uma grande e desordenada reforma em um edifício que precisava de reforços estruturais desde a liberalização do mercado e quebra do monopólio do resseguro. Acabou por se empolgar na execução do projeto, resolvendo aumentar pavimentos. Lamentavelmente, como em qualquer puxadinho, a fraqueza estrutural se agravou. Percebeu-se que as reformas “revolucionárias” feitas por decreto podem ser desfeitas por decreto. Na aposta pelo caminho mais fácil, o endosso ao reformismo regulatório nos levou à mais plena insegurança jurídica.
Nesse momento de incertezas, é fundamental dar sinais claros, inclusive aos atores internacionais, de que há previsibilidade e estabilidade no setor. E isso não significa insistir no erro, eternizando as reformas precárias, mas levá-las ao foro adequado: o Congresso Nacional. Nesse sentido, é muito significativo que o PLC 29/2017 – o Projeto de Lei de Contrato de Seguro –, embora aprovado na Câmara e com parecer favorável à sua aprovação do presidente do Senado e presidenciável Rodrigo Pacheco (PSD-MG) na Comissão de Constituição e Justiça, não tenha sido sequer aventado como uma alternativa.
Em tramitação no Congresso desde 2004, o projeto é o produto das contribuições dos mais variados setores da sociedade e, desde a sua propositura, busca compatibilizar a legislação sobre contratos de seguro no Brasil com a prática setorial do mercado de seguros. Basta uma análise comparada do PLC 29/2017 para notar que a perspectiva dos juristas envolvidos em sua elaboração foi a de consolidar, em texto de lei, o costume desenvolvido no país sob a égide do monopólio do IRB e as melhores posições fixadas pela doutrina e jurisprudência ao longo da evolução do mercado de seguros no Brasil.
Não há, ao contrário das mudanças promovidas pela Susep de Bolsonaro, qualquer intervenção revolucionária no direito brasileiro, mas sim a melhora do direito já posto[1]. Daremos quatro exemplos dessa tendência de consolidação do projeto de lei: (i) a formação do contrato pelo silêncio da seguradora, (ii) o regime do agravamento de risco, (iii) a regulação de sinistro, e (iv) o regime da prescrição.
Até onde sabemos, não há mais sistema no mundo que conceba o seguro como um contrato formal. Tampouco isso parece discutível frente ao disposto no Código Civil. No entanto, desde os anos 1940, o Brasil criou um costume próprio: o contrato de seguro forma-se com a ausência de recusa expressa da seguradora em 15 dias. O projeto de lei, recebendo e positivando essa prática tipicamente brasileira, previu substancialmente o mesmo em seu art. 52. Não há qualquer ruptura no projeto com o que era a prática do mercado até a Circular 647/2021, que impôs um modelo mais favorável ao ressegurador, já que os contratos facultativos e os tratados de resseguro se formam apenas com aceitação expressa. Esqueceu-se do art. 2º do decreto-lei 73/1966.
O agravamento de risco, talvez o ponto de maior litigiosidade entre segurados e seguradoras, tem regramento reconhecidamente incipiente no Código Civil. Não por outro motivo, tanto a jurisprudência como a doutrina abandonam os singelos critérios postos pelo arts. 768 e 769 para exigir, além do dolo ou da omissão dolosa, que o segurado tenha causado o sinistro, ou que o agravamento de risco seja substancial (não seria aceito pela seguradora se o novo estado de coisas fosse conhecido) e duradouro (estabeleça-se um novo normal desequilibrado à seguradora) para lhe retirar o direito à garantia. O projeto de lei, inspirando a maior parte das novas leis de seguro aprovadas mundo afora nas últimas décadas, filiou-se à segunda tendência nos arts. 18-19, e considera o agravamento de risco como uma hipótese de perturbação da base do negócio jurídico.
Como se vê, em relação à disciplina do agravamento do risco, assim como em relação à formação do contrato de seguro, o PLC 29/2017 apenas consolida em lei o que a doutrina brasileira já defendia de longa data, de maneira convergente com o que se observa em outros sistemas, embora com viés até mesmo conservador. Se olharmos, por exemplo, para o regime alemão, observaremos que a proteção do segurado é muito mais extensa: a seguradora é obrigada a fornecer um questionário de avaliação do risco ao segurado, e apenas os fatos relevados nele são passíveis de justificar a extinção do contrato por agravamento de risco (modelo de questionário fechado).
A regulação de sinistro, fase importantíssima do contrato de seguro negligenciada pela blitz reformista, é outro aspecto da tradição brasileira que o projeto de lei visa proteger. O projeto criou um regime jurídico semelhante ao previsto pelo decreto-lei 73/1966, antes da quebra do monopólio, e com isso pretende conciliar a assunção do dever de regular pelas seguradoras com a imparcialidade necessária à boa condução da investigação. Nesse ponto, a propósito, o projeto de lei difere de países como Alemanha, Portugal e Itália, nos quais as normas sobre a regulação de sinistro diferem largamente da prática cotidiana no Brasil. Por lá, o segurado e a seguradora devem entrar em consenso sobre a indenização, e, caso não seja possível, a regulação do sinistro se dará judicialmente ou por meio de um procedimento similar à arbitragem, no qual segurado e seguradora apontam especialistas reconhecidamente imparciais, cuja decisão vincula as partes.
Esse regime, embora mais benéfico ao segurado do que o regime brasileiro, não fora adotado no projeto, em privilégio à prática que se consolidou no mercado de seguros nacional de uma regulação de sinistro de feições inquisitoriais, na qual a seguradora regula o sinistro por si só ou por intermédio de um regulador externo, sobre o qual podem surgir dúvidas quanto à imparcialidade por parte dos segurados. Tema há muito superado em outros países, no Brasil ainda se discute a necessidade de disponibilizar documentos inerentes à regulação do sinistro ao segurado. O projeto de lei, em vez de adotar a moda estrangeira, criou nos arts. 77-92 um regime jurídico semelhante ao previsto pelo decreto-lei 73/1966, antes da quebra do monopólio, numa tentativa conciliatória de manutenção do dever de regular o sinistro das seguradoras sem, no entanto, deixar de assegurar a transparência necessária à condução do procedimento e uma regular investigação.
O regime da prescrição, acusado por muitos de ser um benefício ao segurado que postergar o avanço dos trabalhos de regulação ou demorar para avisar o sinistro[2], em nada será alterado com a aprovação do projeto de lei. A jurisprudência, bem interpretando o art. 206, §1º, II, “b” do Código Civil, reconhece quase unanimemente que o dies a quo do prazo prescricional da pretensão do segurado à indenização é a recusa da seguradora em indenizá-lo. Nos outros sistemas, além de se reconhecer que a regulação de sinistro suspende o prazo prescricional, a disciplina da prescrição da pretensão indenizatória do seguro tende a seguir o regime geral das pretensões contratuais. Imaginem se o projeto de lei concedesse ao segurado o prazo de dez anos para exigir a indenização, que poderia ser suspenso pelo aviso de sinistro! Nesse aspecto, o projeto decidiu reproduzir no art. 124 o que a melhor doutrina e jurisprudência já veem como vigentes.
Em todos esses casos, identifica-se prudência no projeto de lei, que adotou posições ponderadas para enunciar os princípios do seguro brasileiro frente à abertura do mercado.
Os recentes superpoderes reclamados pela Susep ao longo dos últimos anos para promover a reformulação do setor de seguros no país são a mais pura antítese ao projeto de lei, e ao processo dialógico de construção de um regime jurídico capaz de equacionar todos os interesses relevantes por ele representado. Em alguns momentos, abusando do art. 36 do Decreto-lei 73/1966 e contrariando o Código Civil, a reforma regulatória à fórceps cria um precedente perigoso sobre a liberdade do regulador do mercado para legislar normas de direito privado sem o crivo democrático do Congresso Nacional.
A aprovação do Projeto de Lei de Contrato de Seguro mostra-se, assim, como uma medida que beneficiará tanto segurados como seguradores. Isso porque, adotando soluções ou já consolidadas, ou bem menos radicais do que as praticadas nos países centrais, ela cria um regime adequado, minucioso e tecnicamente preciso do contrato de seguro, alheio às aventuras e desmandos da (o) superintendente da vez. Trata-se da via mais adequada para o restabelecimento da segurança jurídica ao setor de seguros brasileiro, e a salvaguarda dos interesses econômicos nacionais frente aos arroubos reformistas autoritários.
[1] Já observava Dieter Medicus no contexto da longa e bem-sucedida reforma do direito das obrigações alemão: “Ao contrário do que ocorria há cem anos, a mudança legislativa no direito civil de hoje já não pode ser justificada com o argumento de que é necessária para a unidade do direito. Pelo contrário, a justificação deve sempre residir no fato de esta mudança legislativa melhorar o estado atual da lei, à medida que ela, especificamente, aumenta a qualidade da aplicação do direito [Rechtsfindung] ou de sua certeza e previsibilidade.” MEDICUS, Dieter. Gesetzgebung und Jurisprudenz im Recht der Leistungsstörungen. Archiv für die civilistische Praxis, v. 186, n. 3, 1986, p. 269
[2] E isso parte de uma compreensão equivocada do regime da prescrição. Desde sempre, o titular da pretensão que atrasa seu nascimento é punido com o início do prazo prescricional desde o momento em que poderia ter adquirido a pretensão e decidiu atrasar seu nascimento (Por todos, PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direito privado. São Paulo: RT, 2012, v. 6, § 670).
fonte: JOTA