Lei Complementar 182/2021 abre oportunidade para superar obstáculos das contratações públicas de tecnologia. Imagine a situação hipotética de gestores públicos alocados em um órgão público municipal responsável pela formulação e implementação de políticas públicas locais que abrangem alto número de usuários. Os problemas e obstáculos são reconhecidos e mapeados, apesar de sua superação não ser simples nem célere. Alguns desses óbices podem ser remediados por meio do emprego de tecnologia da informação e comunicação (TIC) que seja desenvolvida de maneira customizada para facilitar o cotidiano de trabalho nesse órgão público.
No entanto, tal situação traz outros desafios que também são de conhecimento geral e podem ser sintetizados pela seguinte pergunta: Como a Administração Pública pode incorporar tecnologias inovadoras a serem aplicadas em políticas públicas, considerando o caráter maximalista e rígido da legislação de licitações e contratações públicas?
Um dos motivos para essa dúvida reside nas peculiaridades das contratações públicas de tecnologia, que demandam capacidades institucionais específicas da Administração Pública para analisar a demanda por TICs e desenhar editais de licitações que possibilitem selecionar a melhor solução tecnológica. Até junho de 2021, quando ocorreu a promulgação do Marco Legal das Startups (Lei Complementar nº 182/2021), nota-se que o enfrentamento desse dilema era realizado por meio do emprego de instrumentos já previstos na legislação e que não tinham sido elaborados com o objetivo de fomentar a contratação pública de tecnologia.
Essa situação pode ser ilustrada pelo caso da Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes de São Paulo (SMT), mais especificamente seu Laboratório de Inovação e Mobilidade (Mobilab). Trata-se de instituição criada em 2013, cujas duas principais finalidades são a abertura das políticas públicas municipais de mobilidade à participação social e a mudança na relação entre o setor público e empresas que investem em inovação tecnológica na área de mobilidade urbana.
Com o objetivo de enfrentar o problema relatado na situação hipotética acima, a SMT publicou, em 2015, o “Edital de Projetos do Mobilab” (Concurso Público nº 001/2015 – SMT.GAB), licitação que buscou contratar 14 projetos de TIC inovadores a serem desenvolvidos em conjunto com o Mobilab.
Essas tecnologias seriam aplicadas em variadas políticas da SMT, como controle semafórico, fiscalização das concessões do serviço de transporte coletivo de ônibus, monitoramento do tráfego de veículos, planejamento de políticas públicas de mobilidade e registro de reclamações de usuários do transporte público coletivo. A partir de pesquisas já realizadas sobre o caso do Edital de Projetos do Mobilab,[1] nota-se que os seus méritos podem ser identificados em quatro principais frentes:
1) a adoção da modalidade de concurso público, cujos principais critérios de julgamento eram baseados na inovação e criatividade das propostas apresentadas pelas licitantes;
2) utilização de um modelo de contratação baseado na definição dos resultados esperados pela Administração Pública, deixando de lado o modelo convencional de foco excessivo na especificação dos meios que deveriam ser utilizados na prestação dos serviços;
3) formulação de documentos editalícios (principalmente os termos de referência) que permitiam mais de uma saída para a solução de uma mesma questão, evitando a descrição minuciosa do serviço licitado, o que dificultaria o desenvolvimento de TIC inovadora; e
4) emprego de instrumentos que viabilizaram a participação de pessoas físicas e pessoas jurídicas enquadradas como empresa de pequeno porte, microempreendedor individual ou microempresa.
Dos 14 projetos licitados, a SMT, por restrições orçamentárias, celebrou contratos relativos a somente cinco projetos. Destes, quatro foram desenvolvidos dentro das expectativas esperadas e as respectivas TICs foram entregues ao Município de São Paulo.
Entretanto, é necessário destacar que o Edital de Projetos do Mobilab, apesar de adotar modelo de contratação inovador, apresentou limitações em alguns aspectos, como a quantidade de tempo demandada para operacionalizar as tecnologias desenvolvidas. Em outras palavras, os contratos celebrados foram encerrados pelo transcurso planejado na prestação dos serviços, mas a SMT enfrentou obstáculos que impediram uma imediata utilização das TICs desenvolvidas.
Nesse sentido, uma das referidas pesquisas sobre o concurso público identificou que os gestores públicos participantes entenderam que os contratos celebrados pela SMT deveriam ter adotados mecanismos que estabelecessem um prazo máximo para o órgão contratante iniciar a operação e produção da TIC. Além disso, na visão desses gestores, faltou flexibilidade para que os contratos permitissem, por um período mais estendido, a assistência das empresas contratadas na utilização da TIC pela SMT.
Quase meia década após o caso do Edital de Projetos do Mobilab, esse gargalo foi enfrentado pelo Marco Legal das Startups por meio da criação do referido Contrato Público de Solução Inovadora (CPSI). Esse novo instrumento é baseado em regras específicas para o caso das contratações públicas de tecnologia, a fim de viabilizar o atendimento às demandas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia e de promover a inovação no setor produtivo por meio do poder de compra do Estado.
Um dos principais diferenciais desse novo instrumento contratual se refere à fase posterior ao desenvolvimento da solução tecnológica. Diferente do que previa a legislação à época do Edital de Projeto do Mobilab, o Marco Legal das Startups traz o contrato de fornecimento, que permite que a Administração Pública celebre, diretamente com a mesma contratada, novo instrumento contratual cujo objeto é o fornecimento do produto ou solução resultante do CPSI. Esse novo instrumento possui vigência de até 48 meses e valor limitado a cinco vezes o previsto no art. 14, § 2º do Marco Legal das Startups.
Apesar do contrato de fornecimento ser objeto de somente um artigo da nova Lei Complementar, nota-se que a sua institucionalização pode ser vista como um diálogo entre a realidade das contratações públicas e o debate legislativo. O referido gargalo enfrentado pela SMT na implementação das TICs que resultaram do Edital de Projetos do Mobilab poderia ser solucionado pela celebração desse novo instrumento contratual, já que seria possível garantir que as contratadas acompanhassem o processo de operacionalização da solução tecnológica e realizassem eventuais correções nos produtos desenvolvidos.
Entretanto, a boa notícia não deve ser encarada como uma solução capaz de solucionar todos os problemas das contratações públicos de tecnologias. Diante dos relevantes instrumentos jurídicos que foram trazidos pelo Marco Legal das Startups, é necessário acompanhar como eles serão implementados no cotidiano da Administração Pública. Nesse sentido, merecem atenção dois pontos centrais: como os bacharéis em direito responsáveis por atividades de assessoramento jurídico a órgãos públicos irão interpretar e estruturar o CPSI e o contrato de fornecimento? Como os órgãos de controle fiscalizarão a execução desses instrumentos?
Ambas as perguntas poderão ser respondidas ao longo dos próximos anos, na medida em que a Administração Pública celebrar Contratos Públicos para Soluções Inovadoras e, posteriormente, optar pelo emprego do contrato de fornecimento. Enquanto não há dados empíricos para avaliar a efetividade desses novos instrumentos contratuais, faz-se necessário acompanhar os debates acerca da regulamentação do Marco Legal das Startups pelos entes federativos, sem deixar de lado que as contratações públicas de tecnologias não podem ser encaradas como compras públicas triviais e comuns.
Fonte: JOTA