Lei n.º 14.181/2021, recentemente promulgada, busca evitar a exclusão social do endividado
comentários
O Direito das Obrigações pode ser considerado um dos ramos do Direito Privado com maior aplicabilidade na vida social. O seu complexo de normas jurídicas em muito regula as relações econômicas. Pense-se no contrato, a “veste jurídica”[1] das operações econômicas: pessoas (físicas e jurídicas; empresários, consumidores e trabalhadores) adquirem, trocam e alugam bens; fazem empréstimos; prestam serviços; enfim, celebram diversos negócios e realizam diversas operações que envolvem direitos de crédito e obrigações.
O bom funcionamento desse sistema requer o estabelecimento de normas que tutelem o crédito. Sem mecanismos de combate ao não cumprimento imputável, não haveria estímulo para a celebração desses negócios e para o desenvolvimento de relações econômicas. Por exemplo, na longínqua época das Ordenações lusitanas, havia a possibilidade de prisão de devedores, equiparados a criminosos; hoje, a prisão por dívidas não é permitida (exceto para dívidas alimentares), e o patrimônio do devedor é a garantia do credor.
Há muito o Direito brasileiro se preocupa com o pagamento de dívidas de empresas e empresários. Tome-se a falência como exemplo: não há a extinção das dívidas sem pagamento; há, em verdade, o estabelecimento de um processo concursal, com participação dos credores, que permite um tratamento paritário e evita que alguns credores consigam pagamento integral, e outros, não, pelo simples fato de uns agirem de forma mais rápida do que outros. O individualismo dá lugar ao coletivismo, buscando-se atender os interesses dos diferentes credores e prestigiando-se, assim, a tutela do crédito no mercado.
O caminho percorrido foi longo, e, hoje, a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nº 11.101/2005 – LREF), além de dispor sobre o procedimento falimentar, também estabelece mecanismos específicos para viabilizar a superação da crise empresarial, de modo a impedir a prematura liquidação da empresa quando possível a sua reorganização. A LREF migrou de um sistema que visava, inicialmente, à proteção individual do credor ou do devedor pessoa jurídica para uma proteção funcional da economia e da coletividade[2].
No entanto, a LREF é voltada primordialmente ao empresário e à sociedade empresária – apenas estes poderiam se beneficiar da possibilidade da recuperação judicial. Para pessoas naturais, restava apenas o instituto da insolvência civil, pouco difundido no contexto brasileiro e voltado primordialmente à execução coletiva.
É nesse contexto que ganha importância a recentemente promulgada Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021), criada para a proteção da pessoa natural do consumidor superendividado.
Enquanto a LREF disciplina a Recuperação Judicial do empresário e da sociedade empresária, a Lei do Superendividamento disciplina o tratamento a ser dado ao superendividado, como forma de evitar a exclusão social do consumidor, que não consegue pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer o seu “mínimo existencial”. Não se trata de um regime geral, pois restrito a dívidas que englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada (art. 54-A, §2º, CDC).
Recuperação Judicial vs. Lei do Superendividamento
Propõe-se, aqui, realizar um exercício de comparação de alguns aspectos da Recuperação Judicial e da Lei do Superendividamento. Não se nega que cada sistema apresenta suas próprias particularidades; no entanto, a apresentação de paralelos pode facilitar a compreensão quanto ao que se pretende com o sistema do superendividamento, a partir de instituto já conhecido, estudado e aplicado no contexto brasileiro.
O objetivo comum de ambos os sistemas é a renegociação das dívidas de modo a superar uma crise econômico-financeira enfrentada, e não patrimonial[3]. Logo, tanto a sociedade empresária quanto o superendividado apresentam plano para renegociação de suas dívidas – o Plano de Recuperação Judicial, no âmbito da LREF, e o Plano de Pagamentos, para o sistema do Superendividamento.
Enquanto o primeiro deve ser apresentado em juízo pelo devedor no prazo improrrogável de 60 dias contados da decisão que deferir o processamento da recuperação judicial, sob pena de convolação em falência (art. 53, caput, LREF), o segundo deve ser apresentado quando o consumidor superendividado requerer a instauração do processo de repactuação de dívidas, na audiência conciliatória (art. 104-A, da Lei nº 14.181/2021).
Nesse aspecto, nota-se que a Lei do Superendividamento também guarda similaridades com a reforma promovida no instituto da Recuperação Judicial no que tange aos procedimentos conciliatórios. Recentemente, a Lei nº 14.112/2020 trouxe alterações à LREF, incluindo a Seção II-A, incentivando conciliações e mediações antecedentes ou mesmo incidentais ao processo de Recuperação Judicial.
Da mesma forma, o diploma que altera o Código de Defesa do Consumidor também incentiva o tratamento do endividado por meio de procedimentos extrajudiciais, nos termos do Capítulo V, intitulado “Da Conciliação no Superendividamento”. Assim, a partir do art. 104-A do citado diploma, é possível identificar o procedimento previsto ao superendividado para repactuação de suas dívidas extrajudicialmente, análogo às conciliações e mediações antecedentes ao processo de Recuperação Judicial.
Ademais, pode-se notar outros aspectos semelhantes entre o sistema do superendividamento e a Recuperação Judicial. Pela leitura do dispositivo 104-A da Lei nº 14.181/2021, é possível traçar um paralelo entre a audiência conciliatória com a Assembleia Geral de Credores existente nas Recuperações Judiciais, guardada suas particularidades, visto que em ambos os atos, o devedor apresentará Plano de Pagamento aos credores, na tentativa de encontrar o melhor meio de se soerguer.
Outra semelhança diz respeito aos planos constantes em ambas as leis, uma vez que tanto na Recuperação Judicial quanto na Lei do Superendividamento deve o devedor apresentar prazos e deságios para adimplemento dos seus credores. Contudo, há uma diferença quanto à carência para pagamento, pois ao passo que o feito recuperacional prevê um prazo máximo de até um ano para remuneração apenas da classe trabalhista, o Plano de Pagamentos do Superendividado deverá apresentar proposta de pagamento com prazo máximo de até 5 (cinco) anos para todos os credores.
A respeito do prazo para pagamento constante na Lei do Superendividamento, cabe breve comentário em sentido de projeção futura, uma vez que tal carência pode importar no aumento do custo para concessão de crédito no Brasil. Isso porque o percentual de endividados no Brasil já é elevado[4], o que, consequentemente, reduz os níveis de recuperação de crédito. Nesse sentido, chancelar uma moratória de até cinco anos para honrar os compromissos existentes pode ter, como consequência, o aumento da taxa para concessão de empréstimos em território nacional, ou seja, juros maiores.
Caso não haja êxito na conciliação quanto à deliberação do Plano de Pagamento do superendividado, o juiz, a requerimento do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes dos credores que não aceitaram o Plano, mediante Plano Judicial compulsório (art. 104-B, da Lei nº 14.181/2021).
Nesse cenário, o juiz poderá nomear administrador no âmbito da Lei nº 14.181/2021, sem onerar as partes, para que, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, apresente novo Plano de Pagamento. Neste ponto, cabe ressaltar que parece destoante considerar que um profissional trabalhará, sem custos, na realização de um Plano de Pagamento. Isso vai de encontro com o papel do Administrador Judicial no processo de Recuperação Judicial, cuja remuneração é fixada em até 5% do valor devido aos credores submetidos à Recuperação Judicial (art. 24, da LREF).
Essas são apenas algumas das questões que, em uma breve primeira análise, poderiam ser ressaltadas. Louva-se a iniciativa do legislador ao propor lei com objetivo de proteger o consumidor superendividado, garantindo a ele um “mínimo existencial” e permitindo a sua efetiva recolocação no mercado (como, aliás, é o caso da Recuperação Judicial com relação ao empresário e à sociedade empresária). É verdade que “uma entidade jurídica empresarial ineficiente pode – ou até mesmo deve – ser expulsa do mercado, ao contrário da pessoa humana que merece proteção, por não ser descartável”[5]; mas também a legislação recém-inaugurada não atingirá sua finalidade se não for acompanhada de uma reforma cultural, com uma maior conscientização dos participantes no mercado. Assim como na Recuperação Judicial, a prática jurisprudencial terá papel decisivo no desenvolvimento e controle do novo instituto.
[1] ROPPO, Vincenzo. Il contratto. 2.ed. Milano: Giuffrè Editore, 2011, p. 847.
[2] CEREZETTI, Sheila. A recuperação judicial de sociedade por ações – o princípio da preservação da empresa na Lei de Recuperação e Falência. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 83.
[3] Para o caso de crise patrimonial, estaríamos diante de um sistema de falência para a sociedade empresária e de insolvência civil para o consumidor.
[4] Segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), o mês de abril de 2021 registrou recorde de brasileiros endividados, aproximadamente 67,5% das famílias do país encontram-se em situação de inadimplência. Em números globais, são quase 63 milhões de pessoas com dívidas em todo o país, isto é, 39,5% da população adulta.
[5] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 185.
Fonte: JOTA