O ruído: uma nova abordagem das falhas do julgamento humano

Na utilização das novas tecnologias, é preciso ter cuidado. Seres humanos possuem uma capacidade incrível de processamento de informações. Se não somos páreo para os computadores atuais, podemos exercer determinadas tarefas de maneira mais eficiente e alcançar resultados semelhantes, também adequados e tempestivos.

Essa qualidade, contudo, contrasta com outro atributo presente em nosso cotidiano, especialmente quando exercemos a função de “julgadores” (da nossa própria vida; da vida e dos negócios praticados por outros etc.): como podemos adotar escolhas absolutamente racionais em determinados campos e, ao mesmo tempo, exercermos a irracionalidade de maneira tão expressiva em outros?

Podemos ser estritamente racionais na condução de uma atividade profissional (p.e., um engenheiro, ao elaborar os cálculos estruturais de determinada edificação), e majoritariamente irracionais em outras (p.e. investirmos sem acompanhamento profissional na bolsa de valores ou adotarmos escolhas políticas fundadas em paixões e não no bem-estar social).

Até mesmo no campo profissional, condições bastante aleatórias podem impactar as nossas escolhas. Fatores como estar com fome ou não e ver o seu time perder um jogo de futebol podem gerar estados mentais que modificam a tomada de decisão de determinada pessoa antes e depois do episódio, por vezes no mesmo dia.

Esse tipo de erro de julgamento é tratado com precisão e elegância em Noise, o novo livro de Daniel Kahneman, Olivier Sibony e Cass R. Sustein. Noise[1] é um ruído, um barulho que confunde nossa capacidade de decidir e que provoca erro nesse processo.

Ruídos são onipresentes e fazem parte da nossa natureza. De acordo com os autores, esse ruído se diferencia do viés – expressão muito presente em trabalhos jurídicos atuais, especialmente a respeito de inteligência artificial – da seguinte maneira: ao imaginarmos o quadro de um jogo de dardos, iremos encontrar um padrão enviesado quando as marcas dos arremessos estiverem todas fora do alvo, mas sempre próximas da mesma área, uma das outras.

A consistência do viés comporta predição – podemos prever o que irá acontecer sempre que o padrão enviesado operar. Iremos, por outro lado, encontrar um padrão ruidoso quando as marcas estiverem espalhadas, de maneira aparentemente desconexa, por todo o espectro do quadro.

A inconsistência do ruído dificulta a predição – não podemos prever o que irá acontecer quando o padrão ruidoso operar, ainda que se possa prever a dimensão do erro causado pelo ruído. Viés (desvio sistemático) e ruído (dispersão aleatória) são elementos diferentes do erro humano.

Para compreendermos erros de julgamento, tanto o estudo do viés quanto a abordagem do ruído são relevantes – estamos falando, na prática, de atributos quase que complementares. O ruído, contudo, não é abordado de maneira tão expressiva quanto o viés, ao menos em discussões a respeito do impacto da tarefa de decidir para o processo judicial.

É curioso destacar, aliás, que não precisamos ser especialistas a respeito de determinado assunto para notar a existência de um padrão ruidoso: não precisamos ser médicos para constatar que muitos profissionais apresentam diagnósticos diferentes para sintomas idênticos; não precisamos ser juízes – e nem mesmo operadores do direito – para constatarmos que muitas decisões diferentes são proferidas em casos consideravelmente semelhantes.

A correção do ruído, portanto – e aqui tratando especificamente do aspecto jurídico descrito no último exemplo, que é o que mais nos interessa –, não passa necessariamente por uma revolução do direito, mas por uma revolução no âmbito da aplicação do direito em casos concretos, ou seja, do processo decisório. O ruído é, por assim dizer, o maior inimigo da isonomia e da segurança jurídica.

“O julgamento do seu recurso depende da distribuição: se cairmos com tal Câmara, temos boas chances; se formos para a outra, teremos sérios problemas”. Essa é uma passagem comumente dita por advogados a clientes ainda nos dias atuais. O ruído gera injustiças bastante evidentes, especialmente em uma perspectiva pan-processual. Mesmo um caso “único” (na visão do julgador) pode comportar diversos desfechos, inclusive dentro do mesmo órgão julgador. Onde há julgamento, há ruído.

Existem basicamente dois tipos de ruídos. Ruídos de nível (level noise) e ruídos de padrão (pattern noise). Imagine um grupo de juízes decidindo casos semelhantes de diferentes níveis de gravidade em matéria penal. A diferença da média das condenações no grupo de casos, de juiz para juiz, indica level noise. A diferença de julgamento entres os juízes, caso a caso, configura pattern noise.

Por fim, parte do pattern noise é provocada por uma variação de julgamento do próprio juiz, em casos semelhantes, em que o juiz, por razões pouco controláveis, discorda dele mesmo. A esse desacordo interno inconsciente, dá-se o nome de ruído ocasional (occasional noise).

De acordo com as pesquisas mais recentes, metade dos erros de julgamento é causada pelos ruídos, enquanto a outra metade corresponde aos vieses. Numa formula simples, pode-se dizer que erro2 = viéses2 + ruidos2. .

Existem, contudo, algumas ferramentas que podem impedir – ou ao menos mitigar – os danos decorrentes dessa verdadeira loteria decorrente do ruído. A aplicação de regras, fórmulas e algoritmos aptos da “decidir” processos – na prática, auxiliar na tarefa de adoção de decisões – pode, concretamente, gerar resultados mais isonômicos e potencialmente de melhor qualidade que deliberações adotadas de maneira descentralizada.

É importante dizer, inclusive, que a utilização dessas ferramentas de gestão poderá facilitar o mapeamento e correção de vieses – tanto humanos, quanto automatizados. Os próprios mecanismos de aperfeiçoamento de decisões humanas – especialmente a estruturação em múltiplas instâncias decisórias – aplicados até de maneira desmesurada pelo processo civil brasileiro, poderão ser otimizados.

E não estamos falando aqui apenas de ferramentas sofisticadas de inteligência artificial.

Em verdade, qualquer modelo estatístico ou decisório tem potencial para diminuir o ruído, dado que o ruído é uma característica do julgamento humano, e não da máquina.

No limite, um modelo que reproduza o comportamento de um determinado magistrado, será mais preciso do que o próprio magistrado, exatamente porque elimina o ruído decorrente do julgamento humano. A utilização de tecnologia para detectar desvios-padrão entre decisões ou o desrespeito a precedentes também pode, em tese, ajudar a diminuir o ruído e, consequentemente, a taxa de erro nas decisões judiciais.

Não precisamos e nem devemos ser simples engrenagens de sistemas autônomos inteligentes. O objetivo da presente opinião é simplesmente apresentar ao leitor o conceito de ruído como fonte do erro de julgamento, fonte essa a que, diferente dos vieses, as máquinas não estão sujeitas.

Logo, fica demonstrado que o assunto merece um debate mais aprofundado também no âmbito jurídico. Aliás, algum ruído sempre existirá – e deverá, em alguma medida, ser inclusive estimulado – em alguns contextos sociais. O ruído faz parte da natureza humana. Definitivamente, esse não é o caso da decisão judicial, em que o erro é sempre fonte de injustiça.

No atual estado de avanço tecnológico, em que o enorme data lake jurídico potencializa a utilização da inteligência artificial no sistema de justiça, é inaceitável ainda nos depararmos com decisões absolutamente discrepantes a respeito da mesma situação concreta.

O estabelecimento de um panorama anacrônico, de ignorância à inovação que facilita a vida das pessoas e cria ambiente mais isonômicos, precisa, definitivamente, ser combatido também pelos operadores do direito.

Na utilização das novas tecnologias, é preciso ter cuidado. Com o julgamento humano, ainda mais.

Fonte: JOTA - ERIK NAVARRO WOLKART  / FRANCISCO DE MESQUITA LAUX 

 

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