O controle de legalidade na inscrição em dívida ativa

A produção do título que qualifica como fiscal a execução fazendária – a chamada Certidão de Dívida Ativa – não constitui, por si, o crédito a que se reporta. Disso todos sabemos: o crédito naquele documento estampado deriva ordinariamente ou de ato administrativo dirigido a tal finalidade (chamado, no campo tributário, de lançamento) ou de declaração aparelhada pelo contribuinte no cumprimento de dever designado de instrumental ou acessório, o famigerado “autolançamento”.

Para os casos de lançamento, é igualmente sabido que a constituição do crédito só se perfectibiliza com a regular comunicação ao sujeito passivo (ato subsequente à lavratura do lançamento), medida desnecessária nos casos em que o crédito é declarado (ou “autolançado”, como seu usa dizer).

Seja o crédito derivado de uma ou de outra daquelas fontes, o procedimento administrativo de inscrição não pode (melhor: não deve) ser visto – e assim parece que as coisas têm se encaminhado fortemente no plano federal, ex vi da Portaria PGFN 33/2018 – como singela formalidade instaladora do título executório fazendário.

Ao órgão que conduz esse procedimento – normalmente, a Procuradoria da Fazenda credora –, compete usá-lo para aferir a compatibilidade do crédito antecedentemente constituído – tanto por autoridade fiscal (lançamento), vale repetir, como pelo contribuinte – com a ordem jurídica, exercitando o que se convencionou chamar de “controle de legalidade”, expressão que serve inclusive como codinome do procedimento de inscrição.

Até aí nenhuma novidade, quando menos do ponto de vista teórico.

Lembremos, porém, que o sistema jurídico nacional, desde o advento do Código de Processo Civil de 2015, passou a manobrar com notável intensidade, a ideia de “cooperação”, uma das matrizes regentes daquele diploma que, por sua abrangência, vai muito além da noção fechada de processualidade – pistas claras, aliás, foram deixadas pelo próprio Código sobre suas intenções, digamos, “transbordantes”, como quando prescreveu a aplicação de suas diretrizes em nível administrativo, consoante previsto em seu artigo 15, cuja literalidade diz tudo: “[n]a ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.

Com passaporte diplomático, cooperação viaja por todo o sistema e pode (e deve) ser vista como valor que opera por detrás de uma série de técnicas jurídicas, valendo ressaltar – essa é nossa intenção – sua atuação no contexto do procedimento de inscrição.

É que, pressuposta a constituição do crédito, o que se pode(ria) esperar de quem está no exercício dessa função: reconstitui-lo? Integralizá-lo? Chancelá-lo?

Sabendo-se que a inscrição não inova na substância do crédito – dado que sua constituição integra fase predecessora, titularizada por outra autoridade –, não é possível enxergar na atividade desempenhada em nível de inscrição força recriadora, o que nos impõe a conclusão: ou bem o crédito é considerado saudável e é inscrito, ou bem, constatado algum vício, formal ou substancial, total ou parcial, impõe-se, a contrario sensu, a não-inscrição.

Para isso, porém, é preciso que, investida de espírito cooperativo, a autoridade que opera nesse procedimento o enxergue com esses olhos, não como carimbadora intransigente.

Aguça essa premissa o fato de vivermos, em tempos como os atuais, indisfarçável regime de precedentes, ambiente que se movimenta ideias como uniformidade e que, por coerência, incide fortemente sobre o procedimento de inscrição.

Situações óbvias acendem a luz quanto à importância do tema: é o que ocorre quando, no hiato que vai da constituição do crédito até sua inscrição, sobrevém decisão infirmadora do crédito – seria non sense, em casos desse timbre, que a autoridade responsável pela inscrição recusasse qualquer efeito ao precedente em relação ao crédito, inscrevendo-o e levando-o a juízo como se nada houvesse; incorreria, desnecessariamente, na assunção de ônus sucumbenciais decorrentes do subsequente ajuizamento.de execução fiscal fadada ao fracasso.

Mas não é só: mesmo quando o precedente é superveniente à inscrição, nada obsta que o crédito seja decotado do sistema por ato da autoridade que procedeu à anterior inscrição, dada a desejável perenidade do controle de legalidade.

E se assim não ocorrer de ofício, bem melhor seria que, com sua porta aberta, a Administração admitisse a apresentação de manifestação provocadora do sujeito passivo, ato que faria deflagar o que, na perspectiva federal, vem sendo denominado de pedido de revisão de débito inscrito (PRDI), tornando bifásico o controle de legalidade do crédito. Assim sucedendo, além de evitar a judicialização de assuntos que, em certa medida, já teriam transitado, via precedente, pelo Judiciário, minimizar-se-ia custo e tempo direcionados à solução da controvérsia.

Todas essas medidas, note-se, têm na ideia de cooperação evidente inspiração, reescrevendo a função da autoridade controladora dos créditos tributários constituídos em fase anterior, não por beneplácito ou liberalidade, mas por imposição sistêmica.

O espírito cooperativo da Fazenda Nacional já é verificado no plano da processualidade pela realização de atos que, inclusive, dispensam a aquiescência do Poder Judiciário. O artigo 19 da Lei 10.522/2002 estabelece, nesse sentido, que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional está dispensada de contestar, de oferecer contrarrazões e de interpor recursos, bem como está autorizada a desistir de recursos já interpostos, nas hipóteses em que exista precedente vinculante em sentido desfavorável.

A intenção cooperativa é reforçada com mais intensidade ao autorizar a prática das mesmas faculdades processuais a temas não abrangidos pelo leading case, desde que a tal tema sejam igualmente aplicáveis os fundamentos determinantes extraídos do julgamento paradigma (§ 9º do artigo 19 da mesma Lei 10.522/2002).

Em alguma proporção, esse é o perfil adotado no âmbito federal com a implantação e desenvolvimento do chamado “regime diferenciado de cobrança” (RDCC), mas, indo além, devemos nos perguntar: se o procedimento de inscrição não é sinônimo de chancela automática, por que não alargar as opções firmadas pela Fazenda Federal, impondo-as às demais?

Seguramente não deve ser a suposta reserva de competência legislativa dos Estados e Municípios que os autorizaria a recusar esse encaminhamento: além de aparentar como que um óbice à evolução, a evocação dessa pretensa reserva colide com a certeza de que o procedimento de inscrição, porque preparador do título que inspira a execução fiscal, revolve matéria processual – daí sua disciplina, a propósito, em nível de lei federal desde 1980.

Assim orientados, temos presente que, mesmo sem grandes movimentações legislativas, poderíamos enxergar um grande avanço no contencioso tributário se, ajustada aos tempos em que vivemos, a Lei n. 6.830/80 passasse a conter dispositivos com teor tal qual o que segue:

Art. 3º-A. A inscrição, que se constitui no ato derivado do procedimento de controle administrativo de conformidade do crédito fazendário com o sistema jurídico, será providenciada preferencialmente pela Procuradoria da Fazenda credora ou, segundo as regras de organização administrativa, pelo órgão reconhecido como competente para apurar a liquidez e certeza do crédito.

Art. 3º-B. Inscrito o crédito em dívida ativa, o devedor será notificado do inteiro teor da certidão para, em trinta dias, apresentar pedido de revisão, fundado nas seguintes alegações:

I – existência de causa suspensiva ou extintiva da exigibilidade do débito;

II – débitos cuja constituição esteja fundada em matérias decididas de modo favorável ao devedor em sede de controle concentrado de constitucionalidade, enunciados de súmula vinculante ou precedentes vinculantes de que trata o Código de Processo Civil.

Art. 3º-C. Não será admitido o pedido de revisão de que trata o artigo anterior se fundado em:

I – divergência quanto à interpretação da norma jurídica aplicada para constituição do débito;

II – análise de provas quanto à ocorrência ou inocorrência do fato que deu origem ao débito.

Art. 3º-D. Deferido o pedido de revisão, a inscrição, conforme o caso, será cancelada, retificada ou suspensa enquanto perdurar a existência da causa suspensiva da exigibilidade do crédito.

Art. 3º-E. Mesmo depois de efetuada a inscrição, responde a Procuradoria da Fazenda credora pelo permanente controle da higidez do crédito, inclusive para fins de cancelamento administrativo de ofício quando verificada incidental causa extintiva ou caracterizadora de conflito com:

I – decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II – enunciados de súmula vinculante;

III – acórdãos proferidos em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV – enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V – acórdão proferido em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.

Fonte: JOTA

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