Alterações na Lei das Sociedades por Ações sob a égide do Marco Legal das Startups

No último dia 1º, foi sancionada a Lei Complementar nº 182 — com vacatio legis de 90 dias a contar da sua publicação, no dia 2 — e, dessa forma, instituído o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador, bem como aprovadas alterações aos textos da Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações) e da Lei Complementar nº 123/2006 [1].

A recém sancionada Lei Complementar nº 182/2021 dispõe sobre relevantes medidas de fomento ao desenvolvimento do ambiente de negócios e de acesso ao capital — em especial para as startups e o ecossistema da inovação como um todo, que passarão a ter enquadramento jurídico [2] —, introduzindo, portanto, modificações nas searas dos Direitos Administrativo, Trabalhista, Tributário, do Mercado de Capital e Financeiro e, especialmente, do Direito Societário, numa tentativa de mudança sistemática para conformar a legislação vigente aos princípios e diretrizes estabelecidos pelo Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador [3].

A respectiva legislação infraconstitucional, ainda que não constitua um ramo autônomo do Direito, é o resultado de movimentos liberais e desburocratizadores recentes decorrentes da maior inclusão do Brasil no cenário de venture capital global na última década. Já mais recentemente, os incentivos econômicos indiretos e diretos para a diversificação dos investimentos, como a redução da taxa básica de juros (Selic) praticada pelo Comitê de Política Monetária (Copom) e da grande flutuação do mercado de capitais clássico inerente as imprevisibilidades típicas de uma pandemia como a Covid-19.

Outras iniciativas mais conexas ao universo digital e das startups deram maior guarida e força para a aprovação em âmbito do Congresso Nacional do bem-vindo Marco Legal das Startups, o qual veio na esteira de movimentos da máquina estatal em favor de projetos no modelo sandbox; das instruções do Banco Central do Brasil que têm viabilizado o open banking no Brasil; e, em especial, da regulamentação ainda mais inovativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no tocante ao equity crowdfunding, nos termos da Instrução Normativa 588/2017 e seus aprimoramentos atualmente em discussão.

Nesse compasso, enfocando no objetivo prático deste apontamento em nível de Direito Societário, e tendo em vista a amplitude e alcance das modificações introduzidas pela Lei Complementar nº 182/2021, assim como a necessidade de complementação regulatória pelos demais entes e órgãos da administração pública, esta análise tem como objeto e está limitada a descrever, em linhas gerais, as principais alterações aos regimes de administração, publicação e distribuição de dividendos obrigatórios das sociedades por ações, bem como a criação do conceito de "companhia de menor porte" e o acesso facilitado ao mercado de capitais.

Composição da diretoria da sociedade por ações
Com o advento da Lei Complementar nº 182/2021, a redação do caput do artigo 143 da Lei das Sociedades por Ações foi alterada, a fim de permitir que a diretoria — órgão mandatório, de natureza executiva e responsável privativamente pela representação das companhias [4] —, seja composta por um único membro domiciliado no Brasil, diferentemente da redação vigente que exige, no mínimo, dois membros domiciliados no Brasil.

Com efeito, a simplificação da estrutura da diretoria guarda lógica com o próprio sistema da administração das companhias, bem como com a natureza não colegial do órgão, permitindo que a atuação do diretor seja conduzida com ainda mais autonomia e singularmente dentro do órgão, de modo a remover mais esse entrave na escolha do tipo societário e descomplicar as regras de governança corporativa.

Para aquelas companhias já constituídas e que desejarem adotar o formato simplificado da diretoria com a entrada em vigor da Lei Complementar nº 182/2021, será necessário promover a reforma do estatuto social, a fim de adequá-lo à nova redação do caput do artigo 143 da Lei das Sociedades por Ações, assim como tomar as providências para destituição ou obtenção de renúncia dos demais membros que deixarão de ocupar o cargo de diretor, sem prejuízo do aprimoramento das regras para recomposição do cargo em caso de vacância.

Desnecessidade de publicação pela imprensa oficial e utilização de livros sociais eletrônicos
Outra modificação relevante, implementada por meio da alteração do caput, revogação dos incisos I e II e a inclusão do inciso III ao artigo 294 da Lei das Sociedades por Ações, está relacionada à permissão concedida às companhias fechadas com receita bruta anual de até R$ 78 milhões de realizarem as publicações previstas na lei acionária de modo eletrônico, em exceção ao disposto no artigo 289, alterando, assim, os critérios vigentes e estabelecidos no caput e nos incisos revogados do artigo 294, que desobrigam referidas publicações para companhias fechadas que possuam menos de 20 acionistas e com patrimônio líquido inferior a R$ 1 milhão, desde que: 1) a convocação para assembleia geral seja feita por anúncio entregue a todos os acionistas, contra recebido e observada a antecedência mínima; e 2) os documentos relativos à assembleia geral ordinária sejam arquivados na Junta Comercial competente, em conjunto com a ata do conclave.

Adicionalmente à simplificação e redução de custos operacionais relacionados ao regime de publicação da lei acionária, foi incorporado ao artigo 294 o inciso IV, a fim de possibilitar a substituição, pelas companhias fechadas com receita bruta anual de até R$ 78 milhões, dos livros sociais físicos referidos no artigo 100 da Lei das Sociedades por Ações [5] por registros mecanizados ou eletrônicos, em consonância com a Instrução Normativa nº 82, de 19/2/2021, do Drei/SGD/ME, por meio da qual foram instituídos os procedimentos para autenticação dos livros contábeis, sociais e dos agentes auxiliares de comércio, que passaram a ser exclusivamente digitais [6].

Flexibilização da distribuição de dividendos obrigatórios
Como regra geral, a Lei das Sociedades por Ações confere aos acionistas, de um lado, o direito essencial [7] — não absoluto e diretamente atrelado ao risco da atividade empresarial [8] — de participar nos lucros sociais, e, de outro lado, a obrigatoriedade da companhia de distribuir, pelo menos e se o estatuto social não dispuser de modo diverso, a metade do lucro líquido, nos termos do artigo 202, depois de deduzidos os montantes e constituídas as reservas previstas na lei acionária.

A partir da entrada em vigor da Lei Complementar nº 182/2021 e, portanto, do §4º introduzido ao artigo 294 da Lei das Sociedades por Ações, a assembleia geral de companhias fechadas, com receita bruta anual de até R$78 milhões e cujo estatuto social seja omisso [9] em relação à distribuição de dividendos, poderá estabelecer livremente a sua distribuição, desde que não seja prejudicado o direito aos dividendos fixos ou mínimos a que tenham prioridade os proprietários de ações preferenciais.

A despeito da possibilidade de se flexibilizar a distribuição de dividendos obrigatórios, a administração da companhia que se enquadre aos requisitos legais e opte pela distribuição "em formato livre" deverá atuar com diligência redobrada em razão da ausência de critérios legalmente estabelecidos, de modo a se preservar o princípio societário de observância ao interesse social e aos direitos dos acionistas. Sob esse ângulo, os arranjos parasocietários, formalizados por meio de acordos de acionistas, são instrumentos hábeis ao propósito de delinear as balizas da autuação e da proposta da administração para a distribuição de dividendos, conforme venha a ser a orientação dos negócios sociais.

É cediço que no ecossistema da inovação, objeto central da legislação recém sancionada, a participação societária ou direitos contratuais que possibilitam a aquisição dela são os maiores ativos detidos por um investidor, ao menos até a maturação e estabilização do negócio com a aquisição de participação relevante no mercado que se dispõe a atuar, de tal forma que é uma regra mercadológica a necessidade de investimento massivo em tecnologia e em testagem de novos processos e/ou métodos pelas startups. Por isso, obrigatoriedades de distribuição de lucros e/ou restrições à possibilidade de se limitar contratualmente esse direito são óbices para o progresso desses modelos de negócios.

Registra-se, também, que a livre fixação da distribuição de dividendos não se equipara à distribuição desproporcional de lucros, tal como usualmente praticada em sociedades limitadas com fulcro no artigo 1.007 do Código Civil, uma vez que a primeira tem como objetivo afastar as normas aplicáveis ao cálculo do dividendo mínimo obrigatório a ser proposto pela administração, ao passo que a segunda tem como objetivo afastar a principal baliza econômica dos sócios, representada pelo quinhão que cada um detém no capital social.

Acesso ao mercado de capitais pelas companhias de menor porte
No âmbito do mercado de capitais e financeiro, a Lei Complementar nº 182/2021 inaugura, por meio da inclusão do artigo 294-B à Lei das Sociedades por Ações, o conceito de "companhia de menor porte", assim considerada como aquela que aufira receita bruta anual de R$ 500 milhões, bem como dispõe sobre procedimentos simplificados para obtenção do registro de emissor de valores mobiliários, distribuição pública de valores mobiliários e prestação de informações periódicas e anuais, em estrita consonância com os princípios e diretrizes estabelecidos no artigo 3º da Lei Complementar nº 182/2021.

Nesse contexto, a Comissão de Valores Mobiliários deverá estabelecer condições facilitadas de acesso ao mercado de capitais pelas companhias de menor porte, sendo permitido dispensar ou modular a observância do disposto nos seguintes artigos da Lei das Sociedades por Ações: 1) 161, quanto à obrigatoriedade de instalação do conselho fiscal; 2) 170, §5º, quanto à obrigatoriedade de intermediação de instituição financeira em distribuições públicas de valores mobiliários; 3) 109, caput, inciso I, quanto ao direito essencial do acionista à participação nos lucros sociais; 4) 111, §§ 1º e 2º, e no artigo 202, quanto ao recebimento de dividendo obrigatório; e 5) 289, quanto à forma de realização de publicações.

Conclusões iniciais
O Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador representa avanço legislativo nos princípios e diretrizes que governam esse ecossistema, todavia, as alterações promovidas na Lei das Sociedades por Ações, bem como aqueles normativos a serem emitidos pelo Drei e pela CVM, ultrapassam as balizas das startups e, portanto, abarcam todas as companhias, sob a perspectiva da alteração no caput do artigo 143 relativa à composição da diretoria por um único membro, e aquelas que se enquadrem nos critérios objetivos de receita bruta estabelecidos para as outras modificações, sejam elas startups ou não.

Dessa forma, as modificações já implementadas na lei acionária, bem como aqueles normativos que advirão da necessidade de complementação em nível infralegal, repercutirão no ecossistema das sociedades por ações como um todo e sobre institutos basilares do Direito Societário, incluindo no que diz respeito à maior utilização desse tipo societário pelas startups já no início do desenvolvimento embrionária da atividade empresarial.

Por fim, e sem prejuízo de representar uma pequena revolução normativa que tangencia grande parte do ordenamento jurídico brasileiro, o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador tem por objetivo, em essência, colocar o Brasil em relativo maior compasso com as tendências internacionais de busca de redução da burocracia no desenvolvimento da atividade empresarial e de facilitação de acesso ao mercado de capitais, estabelecendo, dessa forma, as premissas e diretrizes para que o Brasil ofereça maior competitividade no mercado global por meio da inovação e do empreendedorismo criativo.


[1] Instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, dentre outras modificações legislativas.

[2] Nos termos do artigo 4º da Lei Complementar 182/2021.

[3] "Artigo 3º - Esta Lei Complementar é pautada pelos seguintes princípios e diretrizes: I - reconhecimento do empreendedorismo inovador como vetor de desenvolvimento econômico, social e ambiental; II - incentivo à constituição de ambientes favoráveis ao empreendedorismo inovador, com valorização da segurança jurídica e da liberdade contratual como premissas para a promoção do investimento e do aumento da oferta de capital direcionado a iniciativas inovadoras; III - importância das empresas como agentes centrais do impulso inovador em contexto de livre mercado; IV - modernização do ambiente de negócios brasileiro, à luz dos modelos de negócios emergentes; V - fomento ao empreendedorismo inovador como meio de promoção da produtividade e da competitividade da economia brasileira e de geração de postos de trabalho qualificados; VI - aperfeiçoamento das políticas públicas e dos instrumentos de fomento ao empreendedorismo inovador; VII - promoção da cooperação e da interação entre os entes públicos, entre os setores público e privado e entre empresas, como relações fundamentais para a conformação de ecossistema de empreendedorismo inovador efetivo; VIII - incentivo à contratação, pela administração pública, de soluções inovadoras elaboradas ou desenvolvidas por startups, reconhecidos o papel do Estado no fomento à inovação e as potenciais oportunidades de economicidade, de benefício e de solução de problemas públicos com soluções inovadoras; e IX - promoção da competitividade das empresas brasileiras e da internacionalização e da atração de investimentos estrangeiros."

[4] "Artigo 138 - A administração da companhia competirá, conforme dispuser o estatuto, ao conselho de administração e à diretoria, ou somente à diretoria.
§ 1º O conselho de administração é órgão de deliberação colegiada, sendo a representação da companhia privativa dos diretores.
§ 2º As companhias abertas e as de capital autorizado terão, obrigatoriamente, conselho de administração. § 3º É vedada, nas companhias abertas, a acumulação do cargo de presidente do conselho de administração e do cargo de diretor-presidente ou de principal executivo da companhia.
§ 4º A Comissão de Valores Mobiliários poderá excepcionar a vedação de que trata o § 3º para as companhias com menor faturamento, nos termos de sua regulamentação." (grifos dos autores).

[5] Dentre eles o livro de registro de ações nominativas, livro de transferência de ações e o livro de presença de acionistas em assembleias gerais.

[6] Instrução Normativa DREI n. 82: "Artigo 3º - Os livros de que trata o artigo 1º deverão ser exclusivamente digitais, podendo ser produzidos ou lançados em plataformas eletrônicas, armazenadas ou não nos servidores das Juntas Comerciais.
Artigo 19 - Os livros autenticados por qualquer processo anterior a esta Instrução Normativa permanecerão em uso até que se esgotem".

[7] Artigo 109, inciso I, da Lei das Sociedades por Ações: "Nem o estatuto social nem a assembleia-geral poderão privar o acionista dos direitos de: I - participar dos lucros sociais; (...)"

[8] Artigo 202, §4º, da Lei das Sociedades por Ações: "§ 4º O dividendo previsto neste artigo não será obrigatório no exercício social em que os órgãos da administração informarem à assembléia-geral ordinária ser ele incompatível com a situação financeira da companhia. O conselho fiscal, se em funcionamento, deverá dar parecer sobre essa informação e, na companhia aberta, seus administradores encaminharão à Comissão de Valores Mobiliários, dentro de 5 (cinco) dias da realização da assembléia-geral, exposição justificativa da informação transmitida à assembléia."

[9] Neste ponto a Lei Complementar poderia ter prezado pela segurança jurídica, isto é, não apenas na hipótese se omissão do Estatuto Social, mas também naquele que expressamente dispuser a possibilidade de livre fixação dos dividendos.

Fonte CONJUR. Por Pedro Henrique Nucci Trellese e Rodrigo Bruno Nahas

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