Improbidade administrativa: reformar o quê e por quê?

Tentativa de reformar lei tão importante quanto a de Improbidade Administrativa, de forma açodada, causa preocupação. Nos próximos dias, a Câmara dos Deputados pretende colocar na pauta de votação o Projeto de Lei nº 10.887/2018, que reforma a Lei de Improbidade Administrativa. Em meio à pandemia e aos inúmeros desafios que o país deve enfrentar para combater os seus efeitos, a tentativa de reformar uma lei tão importante, de forma açodada, causa preocupação e demanda alerta.

É um tanto banal reconhecer, mas quem pretende reformar sua casa parte de uma pergunta inicial: reformar o quê? Reformar por quê? O que se pretende mudar? Qual a necessidade real? Qual ganho, estético ou prático, a mudança trará?

Na sequência, o foco se volta para um aspecto pragmático: a vantagem que virá da reforma é compatível com o custo e os impactos que as mudanças trarão? É o melhor momento para se buscar a reforma?

Não levar tais pontos em conta certamente levará a um gasto maior do que o necessário e, com muita frequência, a ter que se refazer tudo logo em seguida e, nos dois casos, a uma sensação de desperdício, de arrependimento.

Se assim é com uma obra, o que permitiria fugir das mesmas questões quando se fala em reformar uma lei, um código, mudar normas que já estão funcionando?

A Lei 8.429/92 acaba de completar 29 anos, não sem estar submetida a um conjunto de incompreensões, mas seu tempo de uso permite identificar os seus muitos acertos, bem como questionar o que pode ser melhorado.

A prática consolidada da lei permitiu, ao longo dos anos, que associemos claramente certas práticas à improbidade administrativa. O dever de honestidade de todo aquele que administra recursos públicos ou que se relaciona com a Administração Pública é o ponto de partida da definição de improbidade administrativa. Quando alguém se afasta do dever de lealdade com a sociedade, desvia recursos públicos, se enriquece ilicitamente ou se aproveita do cargo, direta ou indiretamente, ou viola princípios comete improbidade administrativa.

Com a reforma, não se encontra nas mudanças sinal de que elas venham a melhorar o sistema atual, pois há vários retrocessos que apenas impedirão a punição de quem se aproveita da função pública ou se desvia do padrão que se espera.

Vejamos apenas alguns dos retrocessos.

Hoje, a lei trabalha com três grandes conjuntos de atos de improbidade: 1 – aqueles que resultam em enriquecimento ilícito, 2 – aqueles que causam dano ao patrimônio público e 3 – os que ofendem princípios da Administração Pública, ainda que deles não resulte enriquecimento ilícito ou dano para o Estado.

O projeto de alteração da Lei de Improbidade Administrativa pretende acabar com o terceiro grupo, ao argumento central de que ele seria muito vago, difícil de ser definido e, ainda, que tais condutas poderiam ser punidas com base em outras leis.

O argumento prova mais do que pretende e, na prática, o que se terá é a exclusão de uma série de atos que, mesmo que não tenham expressão econômica, ofendem a noção de cidadania e alguns exemplos ajudam a visualizar o risco: 1 – se um agente público resolver furar a fila da vacinação da Covid-19, para atender seus parentes e amigos, ele certamente não se enriquecerá ou trará prejuízo para o Estado, mas será honesto e impessoal?; 2 – se um agente do sistema de segurança usar de tortura para obter uma confissão, agirá corretamente?; 3 – se um membro de uma banca de concurso der dicas dos temas ou antecipar as perguntas a um candidato ou privilegiar alguém na correção da prova, estará garantida a igualdade na disputa?

Vários outros exemplos podem ser retirados da vida real, e todos eles, se alterada a lei como pretende o projeto na sua redação atual, deixariam de ser punidos.

Para defender a mudança, alega-se que a tortura já seria punida por ser crime, mas o argumento esquece, de propósito, que fatos graves podem receber punição de diversas naturezas.

Um acidente de trânsito causado por embriaguez pode, ao mesmo tempo, gerar uma multa de trânsito, a punição criminal e, ainda, obrigar o motorista a indenizar a vítima. Por que motivo, então, quem ofende os princípios da administração pública não pode ser punido por improbidade administrativa apenas porque o fato que praticou é previsto em lei penal?

Outro retrocesso do projeto reside em gerar dificuldades à punição de empresas que se envolvam em atos de improbidade administrativa, por exigir que se demonstre que era conhecido o ato de corrupção praticado, em seu favor, por um de seus empregados. A exigência, além de praticamente impossível de ser atendida (ninguém registra corrupção em suas atas ou contabilidade), esquece que o Brasil, ao assinar a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (conhecida como Convenção de Mérida), se obrigou a punir corrupção que resulte em benefícios a pessoas jurídicas.

As alterações discutidas na Câmara dos Deputados insistem em se afastar da Convenção de Mérida quando mudam a noção de agente público e segregam a categoria de agentes políticos.

Como é fácil supor, investigar e punir atos de improbidade administrativa não é uma tarefa fácil e deve contar com medidas eficazes, com tempo adequado para serem praticadas e não podem ser, artificialmente, limitadas por regras de prescrição muito curtas ou por prazos também exíguos para se concluir a investigação. Ninguém propõe que a investigação possa durar indefinidamente, mas o equilíbrio entre viabilidade, prazo justo e condições para a investigação é imprescindível e as propostas em curso não caminham em tal sentido.

Não se pretende esgotar o assunto, mas, sim, demonstrar que um tema de tal importância, com tantas divergências conceituais, não pode ser votado com pressa, com uma urgência que não está ligada a fatos objetivos.

Em um período em que a pandemia impede, por si só, que a sociedade se envolva na discussão das mudanças propostas, faz sentido que o relatório seja apresentado em uma terça-feira apenas aos líderes partidários, aprovado regime de urgência para sua apreciação e votado no dia seguinte pelo plenário da Câmara dos Deputados?

Qual o motivo da pressa? Por que impedir que a sociedade (incluindo a ampla maioria dos demais deputados federais) conheça a redação final das propostas e possa sobre elas refletir e debater?

O momento, portanto, é de reflexão e de necessidade de respostas que expliquem a pressa e a motivação das mudanças, em um processo transparente e democrático, que pode, sim, melhorar a Lei de Improbidade Administrativa, desde que se identifique seus pontos frágeis e o que dificulta a punição a quem merece. Responder às perguntas básicas sobre os objetivos da reforma é fundamental para que o debate seja claro e que a mudança da lei não signifique flexibilização ou diminuição a qualquer custo do seu alcance.

Fonte: Jota

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