ANPD e conflitos decorrentes da LGPD

Planejamento Estratégico 2021-2023 como oportunidade para meios de resolução de conflitos plurais

A Lei Geral de Proteção de Dados ou LGPD (Lei 13.709/2018), em vigor desde o dia 18 de setembro de 2020, já se apresenta como propulsora, seja como fundamento principal ou secundário, de processos judiciais, questionamentos administrativos e investigações pelos organismos de proteção, principalmente, de direitos consumeristas.

Neste cenário em que se observa a existência crescente de interesses divergentes quanto aos direitos e garantias assegurados pela lei, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão central de interpretação da LGPD e do estabelecimento de normas e diretrizes para sua implementação[1], concentra importante tarefa política: delimitar orientações para a resolução de conflitos sobre o tema de privacidade e proteção de dados e garantir, como consequência, maior segurança jurídica às relações de tratamento.

Assim, no último dia 1º de fevereiro de 2021, foi publicado o Planejamento Estratégico da ANPD[2] para o biênio 2021-2023, documento que dispõe sobre a autodeclaração estratégica do órgão e concentra importantes guias à construção da perspectiva brasileira sobre privacidade e à tratativa a incidentes de segurança e reclamações de titulares de dados pessoais.

No tocante aos objetivos, referido documento dispõe de três frentes de atuação. A primeira, relacionada à promoção do fortalecimento cultural quanto à privacidade e proteção de dados, busca a participação da ANPD, como protagonista, na realização de eventos, construção de guias e recomendações, detecção de infrações, além do relacionamento institucional com demais entidades que contribuam à construção do aculturamento do cenário brasileiro à nova legislação.

A terceira frente procura o aprimoramento dos atributos para o cumprimento de competências legais, por meio de estruturação que possibilite a atuação do órgão, com garantia de recursos físicos, orçamentários e humanos.

A segunda frente, posta em destaque para o desenvolvimento das reflexões pretendidas por este artigo, objetiva a criação de um ambiente normativo eficaz para a efetiva proteção de dados pessoais.

Nos dizeres trazidos, o planejamento direciona no sentido de que o objeto de atuação seria, dentre outros, o estabelecimento de procedimentos e mecanismos para o tratamento de incidentes e reclamações de titulares que possam ser recepcionados pelo órgão.

Vislumbra-se que tal atividade representa a definição da linha procedimental para que as pretensões de titulares sejam conhecidas e avaliadas em sede administrativa, bem como que as circunstâncias de incidentes de privacidade sejam submetidas à apreciação e, como consequência, a busca pela construção de cenários que representem menor lesividade aos titulares impactados.

Nesta toada, a ANPD tem uma importante responsabilidade: indicar à sociedade os valores referentes à solução dos conflitos sobre privacidade.

É sabido que o cenário jurídico brasileiro, como resposta à demanda pela necessidade de viabilidade de meios de resolução de conflitos plurais, vem estabelecendo nos últimos anos um sistema denominado multiportas.

Tal estratégia, respaldada por normativos como a Resolução 125/2010 do CNJ, a Lei de Mediação (Lei 13.140/2015), e o Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), é adotada por distintos órgãos reguladores em nosso país.

Como exemplo, destacam-se a atuação de Procons para a busca por meios consensuais de resolução de conflitos nas relações de consumo, a definição de métodos de conciliação por agências reguladoras como a Agência Nacional de Aviação Civil e Agência Nacional de Telecomunicações, além instituição da plataforma Consumidor.gov, do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Ainda, considerando o cenário de regulação disposto pela LGPD, podem ser encontrados dispositivos que, de forma direta ou como suporte interpretativo, direcionam à possibilidade de construção de mecanismos consensuais pela ANPD. Passamos a destacar alguns deles.

Autodeterminação informativa: fundamento disposto no artigo 2º da LGPD, tal máxima normativa pressupõe a atribuição de poder, no contexto das atividades de tratamento, ao titular dos dados pessoais, conferindo-lhe certo nível de tomada de decisão. Este dispositivo legal encontra profunda conexão com os métodos consensuais autocompositivos (por exemplo, mediação e conciliação), ou seja, aqueles nos quais cabe às partes integrantes de um conflito a decisão sobre sua resolução, circunstância que vai ao encontro do valor apresentado no regulamento brasileiro de privacidade.

Conciliação como causa de excludente de responsabilidade administrativa: como resultado da análise ao artigo 52, §7º da LGPD, em contexto de vazamentos individuais ou acessos não autorizados nas quais o controlador alcance um acordo com os titulares, restaria configurada a hipótese de exclusão de responsabilidade administrativa[3], circunstância que deve ser considerada, a priori, na definição estratégica dos agentes de tratamento, e, em segundo momento, nos procedimentos da ANPD, quando da recepção de comunicações de incidentes.

Possibilidade de indicação, pela ANPD, de medidas autocompositivas entre controlador e titular em situações de incidente de privacidade: poderá o órgão determinar adoção de providências ao controlador para reverter ou mitigar os efeitos do incidente, conforme artigo 48, §2º, II da LGPD. Para tanto, seria necessário a ponderação pela ANPD quanto às circunstâncias do fortuito, a gravidade apresentada, e, igualmente, a pertinência para a salvaguarda dos direitos dos titulares. Importante ressaltar que, em referida situação, deve ser preservada a autonomia da vontade para transigir de ambas as partes, figurando como objeto de indicação apenas a participação em procedimento conciliatório.

Requisito de admissibilidade aos peticionamentos pelos titulares: segundo disposição do artigo 55-J, compete à ANPD a apreciação de petições dos titulares contra o controlador “após comprovada pelo titular a apresentação de reclamação ao controlador não solucionada no prazo estabelecido em regulamentação”[4]. Verifica-se, portanto, a existência de condicionante à propositura de procedimento na esfera administrativa, bem como a necessidade de que a autoridade indique, por meio de regulação, prazo para que referida solução venha a ser intentada, cenário fecundo ao incentivo a métodos consensuais de resolução de conflitos.

Adoção de mecanismos para o registro de reclamações: de acordo com o artigo 55-J, XXIV da LGPD, cabe ao órgão a responsabilidade de “implementar mecanismos simplificados, inclusive por meio eletrônico, para o registro de reclamações sobre o tratamento de dados pessoais”[5]. Embora o teor do inciso citado não contemple de modo expresso a busca pela aplicação de métodos autocompositivos, a construção de canais simplificados por meios digitais aproxima a atuação da ANPD às práticas mencionadas neste artigo para o alcance de tratativas entre agentes de tratamento e titulares, à exemplo da plataforma Consumidor.gov, com possibilidade, inclusive, do uso de métodos de resolução de conflitos online.

Ressalta-se que tais reflexões não tem como objetivo o exaurimento da temática, mas a identificação de convergências sobre privacidade e a necessidade de sensibilidade à ANPD para a construção de fluxos coadunados à realidade procedimental de nossa época.

Como conclusão, a ANPD tem, ademais de amplo embasamento legislativo pela LGPD e demais diplomas citados, a oportunidade de construir junto à sociedade brasileira os valores adotados para a resolução dos conflitos sobre privacidade e proteção de dados pessoais, garantindo segurança às relações jurídicas advindas e conquistando papel de destaque no cenário internacional.

Fonte:Jota

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