Reequilíbrio contratual e descontos foram as principais demandas travadas pelas escolas privadas nos tribunais
A pandemia da Covid-19 provocou intensa judicialização no setor de ensino privado no Brasil. As escolas se viram no meio de disputas com pais de alunos, com governos locais, sindicatos, Ministério Público e defensorias públicas de todo o país. E as controvérsias ainda estão longe de acabar porque, embora a reabertura tenha ocorrido em boa parte dos setores econômicos, o retorno às aulas presenciais enfrenta resistência dos governos, do Judiciário e dos próprios pais de estudantes, visto que os números de infecções e de mortalidade no país estão em níveis preocupantes.
Segundo monitoramento de reabertura realizado pelas Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), 16 estados brasileiros ainda não têm previsão de retorno das atividades escolares, nove estados já possuem propostas de retorno, e os estudantes dos estados do Amazonas e do Maranhão já podem voltar às salas de aula. Diante do cenário de incertezas e de intensa judicialização, as escolas ainda precisam organizar o próximo ano letivo e planejam contratos de serviços mistos, com opções de ensino presencial e remoto para evitar os litígios.
O setor não tem um número exato de processos judiciais envolvendo escolas e a pandemia, visto as centenas de ações individuais movidas por pais de alunos visando, em sua maioria, o reequilíbrio econômico financeiro dos contratos educacionais. O advogado da Fenep, Diego Muñoz, estima pelo menos uma ação por unidade da federação movida por Defensorias Públicas ou Ministérios Públicos também discutindo equilíbrio contratual em caráter coletivo.
A revisão contratual e os descontos obrigatórios estão entre os principais litígios envolvendo as escolas e a pandemia. De um lado, os pais, Ministérios Públicos e defensorias públicas pleiteiam redução do valor das mensalidades porque entendem que o serviço educacional contratado sofreu alterações, passou a ser remoto e, assim, a escola diminuiu gastos com estrutura física, como nas contas de água e luz, por exemplo.
Do outro lado, as escolas afirmam que as mensalidades são a principal fonte de renda, e que não conseguem conceder desconto porque não tiveram redução de custos, uma vez que a folha de pagamentos dos funcionários é o principal ônus. Algumas escolas alegam que tiveram que fazer investimentos em tecnologia para a adaptação ao serviço à distância.
Além das ações individuais e coletivas, estados e municípios editaram leis obrigando as instituições de ensino a concederem descontos devido ao fechamento das unidades físicas das escolas por causa da pandemia. No Supremo Tribunal Federal (STF) são quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) e duas arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) envolvendo instituições de ensino e a pandemia.
A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) questiona no STF as leis do Ceará, Pará, Maranhão e Rio de Janeiro e uma do município de Juiz de Fora (MG) que determinaram descontos obrigatórios para todos as escolas particulares. Entre os argumentos, a Confenen questiona a legitimidade dos estados e dos municípios para impor leis desse tipo, argumentando que as legislações locais ferem o princípio federativo, e que a competência para legislar sobre direito civil, e em especial sobre direito contratual, é da União.
As ações no STF ainda trazem como argumentos a violação à livre iniciativa e ao princípio da proporcionalidade “haja vista que a suspensão das atividades presenciais não implica a interrupção na prestação dos serviços educacionais oferecidos”, defende a Confenen em suas petições iniciais. As ações ainda não foram julgadas pela Corte superior.
Nos tribunais estaduais, as decisões são diversas. No dia 26 de abril, o juiz Victor André Liuzzi Gomes, da 13ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho de Manaus, postergou o pagamento de 20% do valor integral das mensalidades no estado do Amazonas em uma ação movida pela Defensoria Pública, Assembleia Legislativa e Ministério Público do estado do Amazonas. No dia 27 de julho, 20 dias após o retorno das atividades no estado, o Tribunal de Justiça do Amazonas manteve a porcentagem enquanto o retorno não for integral.
Em junho de 2020, a 1ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Florianópolis indeferiu a liminar de uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina que pedia redução das mensalidades escolares. Nos estados de Espírito Santo, Tocantins, Paraíba e Rondônia, os sindicatos locais de estabelecimentos particulares de ensino conseguiram derrubar as leis locais de desconto.
Mudanças na postura do Judiciário
Segundo análise do advogado da Fenep, Diego Muñoz, em um primeiro momento foram proferidas decisões liminares concedendo descontos para os estudantes entre 10% e 30%. Algumas ações coletivas de Ministérios Públicos e Defensorias igualmente tiveram êxito no início.
“Passado esse primeiro momento, o Poder Judiciário compreendeu que não era possível pura e simplesmente realizar um corte seco e uma apreciação rasa na situação, muito menos de forma coletivizada, pois existiriam inúmeras particularidades regionais e locais a serem avaliadas, existiriam particularidades de cada escola e de cada faculdade, particularidades de cada segmento de ensino”, explica Munõz. “Sem falar das particularidades de cada contrato e de cada contratante. Por esses motivos, as decisões em ações coletivas passaram a tender a não conceder liminares em caráter geral”.
Muñoz também ressalta que a postura do Judiciário quanto às intervenções legislativas também foi mudando no decorrer dos meses, e vem prevalecendo a inconstitucionalidade das leis. “Ainda que existam ADIs no STF que serão apreciadas, os juízes de 1ª instância e os tribunais de Justiça estão reconhecendo que não há competência constitucional de estados e municípios para editar lei sobre contratos educacionais”.
Em maio deste ano, a Secretaria Nacional do Consumidor, ligada ao Ministério da Justiça, emitiu nota técnica se posicionando contra os descontos obrigatórios com porcentagem fixa e orientando os Procons de todo o Brasil para que sugiram acordos individuais entre as escolas e os pais. “A sugestão é, mais uma vez, a promoção de um ambiente de diálogo com as instituições pelos seus canais de atendimento, a fim de compreender quais medidas serão as propostas para que se cumpra com o objetivo do contrato”, diz a nota.
Neste momento, além dos processos que ainda continuam na Justiça pedindo a revisão contratual, as escolas estão lidando com as ações de reabertura das atividades e as liminares de fechamento. Nestes casos as instituições de ensino estão sendo afetadas embora não sejam partes diretas das ações.
É o caso do Distrito Federal. Em um primeiro momento o governador Ibaneis Rocha liberou as atividades escolares para o dia 27 de julho, mas o Ministério Público do Trabalho (MPT) conseguiu suspender as aulas alegando perigo à saúde dos professores. Depois, a liminar foi cassada e o retorno ao ensino presencial ficou marcado para 6 de agosto. No entanto, novamente, o MPT conseguiu liminar e as escolas continuam fechadas.
Contrato de serviços híbridos
Ainda sem finalizar as incertezas de funcionamento trazidas pela pandemia da Covid-19, as escolas começam a preparar os contratos de prestação de serviços para o próximo ano. Segundo dados do setor, durante a pandemia a inadimplência média subiu de 9% para 35%, e o cancelamento de matrículas nas creches particulares, em que não há obrigatoriedade legal de manutenção da criança no ambiente escolar, já chega a dois terços dos estudantes.
Uma saída que as instituições de ensino estão encontrando para evitar a judicialização, a inadimplência e o cancelamento de matrículas é o oferecimento de contratos de prestação de serviços educacionais híbridos, isto é, com possibilidade de ensino remoto e presencial.
“Quando os pais fizeram matrícula para o ano letivo de 2020 não havia previsão legal para o ensino remoto, o ensino era totalmente presencial. A partir de agora, para haver mais transparência, as escolas deverão demonstrar que a prestação de serviços envolve as duas modalidades e que vão operar de acordo com as determinações da saúde pública e de acordo com a vontade dos pais”, explica Célio Müller, advogado especializado em direito educacional.
Na opinião de Muñoz, da Fenep, os principais desafios das escolas em termos contratuais e de proposta pedagógica para 2021 será saber que tipo de escola os pais e contratantes irão querer a partir de 2021. “O ensino híbrido chegou para ficar e caberá aos órgãos de controle editar com alguma brevidade seu posicionamento sobre se isso será, ou não possível, para 2021, para que as instituições de ensino tomem decisões sobre o que ofertarão”, afirma. “A partir disso surgirão mais dois grandes desafios: a definição do preço desse serviço e os alinhamentos contratuais para realizar toda essa amarração”, complementa.
Fonte: JOTA por Flávio Maia