As recentes transformações que colocam em xeque as premissas essenciais da teoria contratual .A teoria jurídica do contrato foi construída, no século XIX, a partir da premissa da liberdade de contratar, ou seja, de que as pessoas contratam quando, como e com quem desejam. Daí por que, desde que resolvidos os problemas dos vícios de consentimento, os contratos deveriam, como regra, ser considerados válidos e vinculantes, assegurando-se o pacta sunt servanda.
Em sentido convergente, a teoria econômica que se estruturou igualmente a partir do século XIX, a partir das contribuições da economia clássica e da neoclássica, uniu a perspectiva de liberdade com a da racionalidade dos agentes econômicos.
Adotando o paradigma do homo economicus, ou seja, do maximizador racional e autointeressado, criou-se a ideia de que o contrato é o instrumento pelo qual os agentes econômicos exercem sua liberdade para satisfazer suas utilidades ou preferências individuais a partir de uma alocação racional de riscos.
Na alegoria idealizada dos mercados perfeitos, todos os participantes e contratantes teriam acesso à integralidade das informações necessárias e disponíveis para as suas transações, o que seria mais um fator a justificar o processo decisório racional de cada agente econômico.
Entretanto, como a realidade é bem diferente e distante da informação perfeita, a alocação racional de riscos passou a ser gradativamente vista em cenário no qual as pessoas e os agentes econômicos reais atuam em ambiente de riscos ou mesmo de incertezas e com grandes déficits informacionais.
Não obstante, por mais que alguns economistas, como Willianson, tenham passado a considerar as limitações de racionalidade para a compreensão dos contratos[1], tal premissa é muitas vezes utilizada de forma simplificada, do que resulta uma equalização dos contratantes e, consequentemente, a validação das alocações de riscos voluntariamente estabelecidas em tais circunstâncias.
Assim, cada contratante, dentro das suas limitações informacionais e no contexto das imperfeições do mercado, teria, no contrato, a oportunidade de alocar os riscos da forma mais racional possível, de modo a exercer plenamente a sua liberdade de contratar.
Como ambas as partes enfrentariam, de certa forma, os mesmos problemas de déficit informacional e de limitação de racionalidade, tais aspectos seriam fatores de equilíbrio mínimo nas transações.
Não é sem razão que Shoshana Zuboff, em seu interessante livro The Age of Surveillance Capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power[2], mostra a relação entre a liberdade de contratar e a “ignorância” dos agentes econômicos a respeito da totalidade das informações necessárias para a contratação.
A partir da obra de Smith e de vários outros autores, como Hayek, Zuboff aponta a centralidade da premissa de que os mercados são intrinsecamente insuscetíveis de amplo conhecimento, de forma que é a ignorância daí decorrente que possibilita a ação efetivamente livre dos diversos atores de mercado[3].
Verdade seja dita que, já ao longo do século XIX, as diferenças de poder entre os contratantes já começaram a ser utilizadas como um fundamento para demonstrar que a liberdade de contratar não era assim tão evidente, pelo menos para ambas as partes, já que a assimetria de poder poderia fazer com que uma delas simplesmente impusesse a sua vontade sobre a outra, exercendo verdadeira dominação.
Assim, a parte mais fraca não poderia contestar ou resistir, especialmente quando a contratação dissesse respeito a bens ou serviços essenciais ou necessários à sua sobrevivência, como acontece frequentemente nos contratos de trabalho.
O fenômeno das sociedades de massa, que teve como um dos importantes reflexos o crescimento exponencial dos contratos de adesão e de outras formas de contratação mais simplificadas e muito distantes de uma livre negociação, também evidenciou que, em muitos casos, o contrato estava muito longe de ser propriamente um acordo de vontades na concepção clássica da expressão.
Todavia, tais questionamentos não chegaram a comprometer propriamente a ideia de contrato como instrumento de alocação racional de riscos, já que, mesmo para a parte vulnerável, o contrato poderia continuar a ser a ser visto como a única alternativa racional para suprir a necessidade em jogo.
Assim, contratos celebrados em tais situações poderiam até ser questionados sob o prisma da justiça ou da equidade, mas não pela perspectiva da alocação racional de riscos.
Consequentemente, salvo temperamentos em relação a contratos assimétricos ou não paritários, como é o caso dos contratos de consumo e de trabalho, e algumas soluções para evitar resultados inaceitáveis mesmo em relação a contratos paritários – de que é exemplo a hipótese de onerosidade excessiva, pode-se dizer que persiste, até os tempos atuais, a compreensão do contrato como um acordo de vontades decorrente da livre e racional alocação de riscos entre as partes, dentro das limitações cognitivas e informacionais de ambas.
Parte-se, portanto, da premissa de que, apesar de todas as imperfeições do mercado e das limitações inerentes à racionalidade humana, ainda resta às partes uma dimensão importante em que podem exercer sua autodeterminação para alocar riscos diante das informações disponíveis no momento da contratação.
Entretanto, muitos fenômenos recentes vêm colocando em xeque as premissas das teorias jurídicas e econômicas do contrato tanto pelo viés da liberdade de contratar como pelo viés da alocação de riscos.
Dentre eles, pode ser mencionada a crescente utilização da tecnologia nas contratações, a ponto de termos hoje uma série de contratos que independem da presença humana, como contratos entre máquinas, ou mesmo contratos que já podem ser traduzidos em softwares, como é o caso dos contratos inteligentes.
Todos esses fenômenos impactam não somente na questão da liberdade de contratar, diante do protagonismo das máquinas ou dos programas computacionais, como também, a depender do caso, na alocação de riscos.
Com efeito, a depender das estratégias e da velocidade dos computadores, há grandes riscos de manipulação de informações a fim de obtenção de vantagens indevidas, problemas que já são extremamente preocupantes nos mercados de capitais, nos quais as transações entre máquinas já são uma realidade há bastante tempo.
Aliás, no âmbito específico do mercado de capitais, não é nova a discussão no sentido da necessidade de se encontrar um equilíbrio mínimo no acesso à informação, sob pena de não haver incentivos para o investimento ou de se aumentar o custo respectivo, uma vez que os investidores só correrão riscos excessivos mediante a expectativa de remuneração mais alta.
Daí a ideia de que a competição nos mercados de capitais deve ocorrer mais pela eficiência na análise das informações do que propriamente pela obtenção da informação em si, de modo a afastar assimetrias informacionais injustificáveis e evitar, dentro do possível, as estratégias de manipulação do mercado.
Tais situações, indubitavelmente, apresentam inúmeros desafios para a teoria contratual e pavimentam o caminho a ser explorado pelo presente artigo, cujo objetivo é ampliar tal discussão para abranger todos os tipos de contratos, indo além das preocupações específicas dos mercados de capitais.
Nesse sentido, quatro aspectos merecem especial atenção para a presente reflexão. O primeiro deles decorre do farto e consistente volume de pesquisas da neurociência, da psicologia, da economia comportamental, da comunicação e do marketing que apontam para o fato de que os seres humanos apresentam inúmeras limitações de racionalidade.
Mais do que isso, os vieses e limitações podem ainda ser explorados indevidamente pelo outro contratante, de forma a influenciar ou mesmo a manipular a contraparte para que ela aja sem a devida consideração dos seus próprios interesses.
Em casos assim, é no mínimo questionável que os pressupostos da liberdade de contratar e da alocação racional de riscos estejam presentes, sendo pouco provável que os vícios de vontade possam resolver todos os problemas decorrentes dos contratos assim celebrados.
Acresce que, em muitos casos, as falibilidades e limitações de racionalidade não são exploradas de forma explícita ou evidente, mas sim por meio de outras estratégias que, embora sejam mais sutis ou mais dificilmente perceptíveis, podem ser extremamente pervasivas, embora nem sempre seja possível a perfeita identificação de nexo causal.
O fato é que, cada vez mais, discute-se a probabilidade de que, por uma série de circunstâncias, os cidadãos ou agentes econômicos possam ter suas opiniões, crenças e valores modificados indevidamente por meio de diversas técnicas ou estratégias, o que coloca em risco a própria ideia de individualidade.
Tais circunstâncias não são resolvidas com a mera incorporação da racionalidade limitada na análise econômica do contrato, ainda mais quando se parte da premissa de que tal característica se estende igualmente a ambas as partes, gerando uma espécie de equalização entre elas.
A questão aqui é que tais aspectos podem levar a uma total assimetria entre as partes, possibilitando inclusive que uma manipule a outra por completo, análise que não pode ser apriorística, mas que deverá considerar as circunstâncias concretas de cada contratação.
O segundo problema diz respeito às crescentes situações de graves e expressivas assimetrias informacionais, especialmente em casos de contratos cada vez mais complexos do mundo digital e tecnológico, em relação aos quais não é exigível que uma das partes possa entender todos os desdobramentos do seu consentimento.
Logo, se as partes não conseguem minimamente entender os efeitos da sua liberdade de contratar, há bons motivos para se pensar em alguns temperamentos à vinculação contratual, especialmente quando é aceitável e justificável a ignorância ou as dificuldades de compreensão de uma das partes quanto às premissas e aos efeitos dos contratos.
O terceiro problema diz respeito aos riscos de manipulação de informações por parte de outros contratantes ou mesmo de terceiros, que podem beneficiar, intencionalmente ou não, determinado contratante em detrimento do outro.
Com efeito, o mundo digital, que tem a informação como a sua maior fonte de poder, está longe de ser um espaço em que o fluxo informacional seja amplo e democrático.
Cada vez mais o fluxo informacional vem sendo corrompido por estratégias dolosas de desinformação, como as fake news, além de depender de agentes que, como as plataformas digitais, são verdadeiros controladores ou gatekeepers das informações, na medida em que filtram, selecionam, ranqueiam e moldam (efeito framing) as informações que chegam ao conhecimento dos cidadãos e agentes econômicos.
Por mais que o fenômeno da desinformação sempre tenha sido presente no desenvolvimento da humanidade, em maior ou menor grau, as atuais condições tecnológicas potencializam em larga escala as suas repercussões, transformando cada cidadão em uma mídia potencial de amplo alcance, especialmente quando consegue se associar, de forma gratuita ou remunerada, às diversas plataformas e gatekeepers do mundo digital.
Nesse contexto, grandes agentes econômicos podem igualmente sedimentar ou ampliar o seu poder econômico por meio do poder de comunicação.
É inequívoco que o referido contexto pode ser de extrema importância em diversas contratações, na medida em que interfere diretamente na base informacional a partir da qual os contratantes tentarão fazer seus cálculos e alocações de riscos.
Tal circunstância evidencia que as preocupações com manipulação de mercado não podem mais ficar restritas somente aos mercados de capitais, já que inúmeras iniciativas podem comprometer as premissas da liberdade de contratar e da alocação racional do risco em diversas outras contratações.
Por fim, ainda há um outro ponto a ser observado, especialmente na economia movida a dados. Shoshana Zuboff aponta que o chamado capitalismo de vigilância (surveillance capitalism) vem sendo caracterizado por uma convergência sem precedentes entre liberdade e conhecimento, razão pela qual alguns agentes passam a dispor de total informação sobre o mercado e, com base nisso, não precisam mais negociar contratos com base em riscos e incertezas, já que podem fazê-lo com base no amplo domínio da informação e na perspectiva de resultados garantidos[4].
Consequentemente, em situações assim, deixa de existir o relativo equilíbrio entre os agentes econômicos que decorreria da ignorância em relação à totalidade das informações do mercado, partindo-se da premissa de que estas seriam pulverizadas e descentralizadas.
A partir do momento em que determinados agentes conseguem agregar, centralizar e compreender todas as informações do mercado, o contrato deixa de ser um instrumento de alocação recíproca de riscos e torna-se forma de dominação da parte mais forte – que detém o pleno conhecimento e, portanto, não se submete propriamente ao risco do negócio – sobre a outra.
Todas essas circunstâncias mostram como as premissas de liberdade de contratar e de alocação racional de riscos são cada vez mais frágeis em inúmeras contratações dos tempos recentes.
Estamos muito longe tanto da situação ideal da informação perfeita, como também da situação de ignorância ou de informação imperfeita, diluída e pulverizada no mercado, a justificar um cenário de riscos e incertezas para todos os agentes econômicos, a serem equacionados por meio de acordos de vontade.
A realidade atual cada vez mais caminha para quadros de grandes assimetrias informacionais ou mesmo de manipulação de informações, o que não pode ser ignorado pela teoria contratual.
Consequentemente, abre-se caminho para que os contratos sejam vistos por uma perspectiva mais estrutural e menos voluntarista, que compreenda a ação das partes não somente pelos critérios de liberdade e racionalidade, ainda que limitada, mas sobretudo pelos elementos concretos – tanto os pessoais, como os que caracterizam o mercado envolvido – que foram determinantes para a contratação e para a alocação de riscos daí resultante, especialmente sob a ótica das informações disponíveis no momento da contratação.
Verdade seja dita que, em algumas das situações apontadas, a solução para o caso pode vir da contenção do excesso de oportunismo das partes, limitando a possibilidade de exploração e manipulação direta de um contratante sobre o outro.
Entretanto, em vários outros cenários, isso não será possível, pois as distorções contratuais decorrerão não de ação ou omissão imputável ao outro contratante, mas sim do próprio fluxo informacional que, embora tenha sido manipulado por terceiros, foi a base sobre a qual as partes se apoiaram no momento da contratação.
Tais observações mostram a necessidade de refletirmos, com mais cuidado, sobre os fundamentos da teoria contratual, a fim de verificarmos se e em que medida eles se adequam a uma realidade cada vez mais complexa e o que pode ser feito para ajustá-los aos desafios da atualidade.
Fonte:JOTA