Há muito tempo começamos a trilhar um caminho sem volta: o da vida virtual. Seguramente, somos mais de 4 bilhões de pessoas – ou usuários – presentes nas mais variadas redes sociais, cada uma com suas particularidades, graus de interação ou mesmo nível de proteção ou preservação da privacidade dos usuários, a depender da estabilidade política ou mesmo da força das instituições jurídicas de cada um dos países onde os serviços são ofertados e consumidos.
A partir de nossos perfis (e avatares) no mundo digital, produzimos, criamos, interagimos, enfim, vivemos nossa vida digital sem perceber que toda essa produção (fotos, vídeos, textos, áudios, comentários, opiniões) formam uma verdadeiro acervo que, de certo modo, reflete e se torna um grande registro da nossa existência, embora, raras vezes, seja ele sistematizado.
Mas quando a vida real termina, o que acontece com todo esse acervo que produzimos e se encontra armazenado em algum servidor cuja localização não conhecemos, mas que acaba por ser uma parte intrínseca da nossa personalidade e uma espécie de marca indelével de nossa existência?Esse conjunto de dados pertencentes a quem falece vem sendo chamado de herança digital.
Esse patrimônio virtual, além de ser constituído por fotos, vídeos, áudios, games, músicas, filmes, centenas de mensagens particulares, também inclui moedas virtuais, senhas de banco e outras informações ou páginas de perfis que, por exemplo, podem servir a uma campanha publicitária e gerar receita ao seu titular.
É importante diferenciar, portanto, o patrimônio digital, esse com significância econômica, daquele que não o possui. Os dados que não possuem valor econômico e que se prestam à manutenção de relações de afeto e interação, com fim meramente informativo, em princípio, não estão sujeitos às regras de sucessão de bens previstas na legislação civil.
Já o patrimônio digital, justamente pelo valor econômico, submete-se às regras do direito sucessório, podendo inclusive, ser objeto de testamento ou quaisquer disposições aplicáveis aos bens corpóreos. Criações autorais como textos, músicas, filmes e quaisquer expressões artísticas, também estão protegidas pela Lei de Direitos Autorais.
De todo modo, considerando que o desenvolvimento desses acervos digitais ainda é um fenômeno relativamente novo, assim como o é o fato de termos nossa vida digital, torna-se especialmente desafiador compreender quais as regras a serem seguidas quanto à regulamentação desse patrimônio, especialmente quando seu titular morre.
Nesse caso, o tema ainda carece de uma legislação própria, embora algumas tentativas recentes não tenham surtido efeito. Em 2019, dois projetos de lei que tratavam da herança digital tramitavam no Congresso: o PL 4847/2012, que definia o conceito dela; e o PL 4099/2012, que visava garantir aos herdeiros a transmissão de todos os conteúdos de contas e arquivos digitais.
Contudo, nenhum deles foi adiante e os dois projetos de lei foram arquivados.
Portanto, a legislação em vigor no Brasil, atualmente, para regular conflitos e controvérsias decorrentes da herança digital, basicamente, são o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), que estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil; o Código Civil, na parte que regula o Direito Sucessório; e, por fim, o próprio Código de Defesa do Consumidor (CDC), na medida em que a relação do usuário com o provedor/plataforma digital, em geral se constitui por meio de um contrato (de adesão) de prestação de serviços (aqueles termos de serviços que são aceitos por simples clique).
De qualquer modo, casos relacionados à herança digital tem surgido cada vez mais, levando o Judiciário ao enfretamento dessa nova realidade, assim como em todas as outras vertentes do chamado Direito Digital, que trata das consequências práticas de atos perpetrados pelos meios digitais.
Essas novas formas de patrimônio e herança, assim como as questões e controvérsias decorrentes do reconhecimento da existência delas, exigirá um claro posicionamento dos Tribunais, assim como acabará por induzir – como de fato já vem ocorrendo – a discussão sobre uma legislação própria e pela qual se atribua tratamento adequado a essa nova classe de bens jurídicos, possibilitando que estratégias de proteção e resguardo deles possam ser constituídas e estabelecidas com segurança e transparência.
Mesmo sem legislação específica, entretanto, há várias medidas que podem ser tomadas para evitar problemas legais quando houver necessidade de transmitir bens e direitos digitais aos herdeiros, que vão da elaboração de um testamento pelo qual o titular do patrimônio digital manifesta sua vontade em relação a ela, e desde que tais disposições sejam compatíveis com os termos contratuais celebrados com os serviços de internet, até a criação de um planejamento sucessório, entendido como um conjunto de estratégias pelas quais serão gerenciados os bens digitais.
Por Eduardo Pires