resquícios do autoritarismo no Estado Democrático de Direito. Em uma de suas passagens mais marcantes, o célebre escritor e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, William Faulkner, afirmou que “o passado nunca está morto, nem está passado”. Essa frase parece pertinente para ser comparada à postura de autoritarismo, que permeia há séculos a relação entre Estado e cidadãos em nosso país.
Infelizmente, ainda é possível verificar a persistência de práticas autoritárias e que convivem lado a lado com uma Constituição que é, na teoria, democrática. Quem opera com o Direito sabe a dificuldade da relação verticalizada entre os órgãos administrativos e a população, especialmente em processos decisórios externos e restritivos de direitos. Conseguimos identificar um descompasso entre as leis constitucionais e a realidade prática, como os desequilíbrios processuais, contraditório ilimitado, parcialidade de autoridades julgadoras, critérios diferenciadores de distribuição do ônus da prova e aplicação de sanções com base em proibições genéricas e sem fundamentos suficientes.¹
O ponto chave dessa reflexão é que a democratização do Estado é incompleta quando não se concretiza no cotidiano da Administração e de seus agentes públicos. Além disso, é necessário horizontalizar suas relações jurídicas, que englobam muito mais do que o mero período eleitoral: a incapacidade de a burocracia estatal promover a participação pública impede a qualificação como efetivamente democrática, devido à ausência ou fragilidade de instrumentos administrativos.
A literatura sobre o tema levanta alguns aspectos interessantes, que trazem um dualismo entre a “democracia” mascarada por resquícios autoritários. Podemos destacar, em linhas gerais:
As origens coloniais da Administração, com a fundação de um Estado sem sociedade;
Modelos ibéricos de burocracia, caracterizados pela centralização, hierarquização e profissionalização;
Sociedade marcada pela escravidão;
Adoção de monarquias absolutistas após a independência, desprovidas de instituições intermediárias sólidas;
Inauguração de uma República militar, em crise com os ideais liberais;
Repetidas suspensões do regime democrático no período republicano, principalmente durante a estruturação de grande parte das instituições públicas brasileiras;
Processo de redemocratização lento e negociado após o período de ditadura militar (1964 - 1985), com permanência de instrumentos autoritários.
Todos os pontos mencionados proporcionaram, de certo modo, traços do autoritarismo que ainda constam nas relações jurídico-administrativas, seja por meio da manutenção de algumas práticas, regras e princípios ou posicionamentos de jurisprudência. É papel do campo jurídico discutir novas dinâmicas para consolidar, de fato, o aspecto democrático de nossa Constituição.
¹ GUEDES, Demian. Autoritarismo e Estado no Brasil: tradição e processo administrativo. Belo Horizonte: Letramento, 2016.
Por: Eduardo Pires