Crise fiscal no país não é por falta de lei, mas por desobediência às regras

Avaliação é de especialistas em Direito Financeiro que debateram o arcabouço fiscal para enfrentar uma crise sem precedentes. Combate à corrupção no Brasil é desafio de toda a sociedade.

O arcabouço fiscal brasileiro está preparado para enfrentar a crise sem precedentes em que o país está inserido, que somou os efeitos da pandemia da Covid-19 com as dificuldades orçamentárias que se arrastam pelo menos desde 2014. O problema, na verdade, está na desobediência das regras fiscais por todos os responsáveis por respeitá-las.

O diagnóstico foi dado por especialistas em Direito Financeiro que participaram nesta terça-feira (24/11) de um webinar que tratou do tema “aprendizados das pedaladas, crise dos estados e desafios para o futuro”.

Participaram Antônio Carlos Costa D’Ávila, ex-auditor do TCU e consultor legislativo da Câmara dos Deputados, José Maurício Conti, professor de direito financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e colunista do JOTA, e Doris Coutinho, conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins (TCE-TO). 

De acordo com os especialistas, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e outras normas que versam sobre a gestão do dinheiro público contêm regras claras e didáticas para se fazer uma gestão minimamente responsável do ponto de vista fiscal. No entanto, problemas de má gestão, falta de planejamento, de orçamentos fantasiosos e da recorrência a que são subvertidas essas regras fiscais dificultam suas aplicações.

“O Brasil preparou todo o setor público para as renegociações de dívida na década de 90 e, em seguida, trouxe a LRF. Não é por falta de arcabouço fiscal ou de regras bem didáticas que estamos passando pela situação recente, mas pela desobediência às regras fiscais existentes”, disse Antônio Carlos Costa D’Ávila, ex-auditor do TCU.

Segundo ele, mais de 90% das medidas provisórias recentes, que estabeleceram renúncia de receita e despesas obrigatórias de caráter continuado, não observaram as condicionantes dispostas pela LRF. “Às vezes nem se indicava medida de compensação e isso tudo passou pelo crivo do Poder Legislativo. Às vezes a gente coloca os holofotes só sobre o Poder Executivo, mas existe uma falha muito grande no processo legislativo que às vezes aprova normas sem observar as regras fiscais”.

A sucessão de normas que facilitam a flexibilização da responsabilidade fiscal de estados e municípios, assim como o alongamento do pagamento de dívidas públicas, também interferem na saúde fiscal dos cofres públicos, segundo José Maurício Conti.

“Após promulgação da LRF, a situação fiscal do país continuou a mesma porque os problemas de endividamento começaram a se agravar. Esses problemas só não foram muito intensos no primeiro período [de vigência da LRF] porque o Brasil viveu uma fase de crescimento econômico. Assim que começou a ocorrer uma crise fiscal, essa situação dos estados e municípios se agravou da mesma forma que sempre ocorria”, afirmou.

“No período pré-LRF e pós-LRF, o que se tem visto é a utilização da mesma técnica, que não deixa de ser uma técnica de administração bombeiro, de resolver os problemas imediatos de forma improvisada”, continuou.

Em sua análise, a relação entre a dívida pública e o sistema federalista adotado no Brasil é de grande relevância para entender como o país chegou nesse ponto de resolver seus problemas fiscais com flexibilização das regras e renegociação de dívidas.

“Quando há um desequilíbrio fiscal que leva um ente federado à falência, não existe uma solução prática para essa falência. O que vai fazer? Não tem como deixar de existir um ente federado, não é igual uma empresa. Isso faz com que a gestão da dívida seja algo complicado e preocupante”, explicou.

Nesse cenário, soma-se o fato de que os mandatos são de quatro a oito anos e as dívidas em geral tendem a ultrapassar esses prazos. “De forma que o governante que assume as vantagens e benefícios da dívida, nem sempre é aquele que vai arcar com o ônus de pagá-la. Então existe uma tentação muito grande de se exceder no endividamento. O que vemos é um problema permanente e constante, que é resolvido estabelecendo normas que facilitam a renegociação das dívidas”.

Para Conti, é preciso “levar o direito financeiro a sério” para fazer cumprir as normas que já existem. “É absolutamente inútil ficar alterando as regras, porque as novas normas vão ter fatalmente o mesmo destino das anteriores”.

Pedaladas fiscais
Na avaliação de Doris Coutinho, a crise desencadeada pela pandemia desnudou a incapacidade do Brasil em incorporar aprendizados com os erros passados, mantendo até hoje vícios que permeiam a prática institucional orçamentária.

Segundo a conselheira, há três deles que merecem destaque. O primeiro vício envolve a deficiência de planejamento, que normalmente é “guiado por curto prazismo eleitoral, pela captura de interesses paroquiais que resultam nessa administração caótica em todos os níveis, marcada pelo desperdício de recursos e pela má prestação de serviços, além do problema grave de obras paradas”.

Em segundo lugar, Coutinho aponta uma desproporcionalidade dos gastos tributários e do crescimento das políticas de renúncia fiscal que hoje equivalem a 4,5% do PIB do país. “Essa desproporcionalidade diz respeito à inadequação de boa parte dessas desonerações, que são políticas setoriais pouco ou até nada a avaliadas em sua capacidade de fomentar os objetivos a que se fundamentam. E, mesmo sem clareza sobre a sua eficácia, continua sendo expandida”.

No seu entendimento, esse problema poderia, inclusive, ser solucionado para garantir extensão de um programa como o auxílio emergencial para 2021. “Na disputa da extensão do auxílio se ignora o espaço fiscal ocupado pelas renúncias tributárias. Estão, se pensa em malabarismos inconstitucionais. A dificuldade em se promover essas revisões incorre justamente pela origem desses benefícios tributários que via de regra são fruto de pressões corporativistas”.

Por fim, ela aponta a baixa efetividade dos gastos públicos e a contabilidade criativa, mais conhecida como pedaladas fiscais. “As pedaladas estão em constante evolução e experimento. A simples cogitação de utilizar recursos do orçamento de guerra para financiar obras e programas desvinculados do controle da pandemia, sem que isso configure desrespeito ao teto de gastos, não tem outra alcunha que não seja pedaladas”.

O ex-auditor do TCU, Costa D’Ávila, avalia que essa contabilidade criativa tem perdido fôlego, principalmente depois do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. “Algo que a gente aprendeu depois dos processos da pedalada foi a não permitir mais que as pessoas usem a contabilidade criativa, pelo menos no âmbito federal. Toda vez que o governo sinaliza que isso possa representar uma contabilidade criativa você vê uma gritaria geral”, afirmou.

 

Fonte Jota por CLARA CERIONI

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