Afinal, com quem você esteve confinado nos últimos meses por conta da pandemia?

Afinal, com quem você esteve confinado nos últimos meses por conta da pandemia?

O confinamento imposto pela pandemia pode ter precipitado relações afetivas, transformando namoro em união estável com efeitos patrimoniais, sem que o casal tenha se dado conta disso, e, pior, seja surpreendido com uma abrupta e indesejada disputa de bens.

Passado já mais de 1 ano desde o início da pandemia da Covid-19, são inúmeras – e notórias – as mudanças de padrão de comportamento que tiveram de ser adotadas na tentativa de debelar as altíssimas taxas de contaminação pelo coronavírus, mais especificamente o confinamento de boa parte da população em suas casas, ainda que o termo lockdown, no Brasil, nunca tenha significado, de fato, o trancamento das pessoas, como se viu em diversos países.
De todo modo, o confinamento forçado impôs à população dinâmicas de convivência e relacionamento que colocaram à prova justamente a capacidade de tolerância para com o outro, ainda que fosse ele pessoa próxima ou mesmo membro do mesmo núcleo familiar.
Para se ter uma ideia, segundo dados do Colégio Notarial do Brasil — Conselho Federal (CNB/CF), no segundo semestre de 2020 foram registrados 43,8 mil divórcios realizados em cartórios no Brasil, número 15% maior em relação ao mesmo período de 2019.
Por outro lado, e com consequências muito mais desastrosas, o mesmo confinamento forçado serviu de empuxo a uma explosão de casos de violência doméstica, seja pelo incremento da convivência entre marido e mulher, seja pela dificuldade de alcance, por muitas mulheres, de estruturas de apoio para contenção e/ou paralisação da violência sofrida por elas.
Acontece que a mesma necessidade de confinamento, principalmente para quem pôde fazê-lo sem comprometimento e/ou perda de salário e renda, o que obviamente se deu com relação às classes econômicas mais favorecidas, fez despertar para a ocorrência de uma situação fática a respeito da qual podem decorrer importantes efeitos jurídicos, qual seja, a transformação de relações afetivas eventuais (o tradicional namoro) em uniões estáveis (hétero ou homossexuais), pelo fator da convivência.
É que um grande número de pessoas, na medida em que tiveram condições financeiras para tanto, optaram por isolar-se até mesmo fora das grandes cidades onde moravam e tinham seus empregos, transferindo a moradia, em muitos casos, para cidades litorâneas ou do interior, eis que a implementação do home office desconhece barreiras ou distância física.
E muitas dessas pessoas fizeram-se acompanhar dos respectivos namorados(as), que passaram a não só conviver, mas também coabitar com o(a) parceiro(a), em mudança de dinâmica que poderá ter transformado o namoro em típica união estável, com os evidentes efeitos patrimoniais que dela decorrem.
É óbvio que tal transformação no status do relacionamento não decorre do fato da coabitação por si só, uma vez que é o intuito de constituir uma relação familiar que determina a possibilidade (ou não) de se reconhecer uma união estável, conforme se depreende tanto do artigo da 226 da Constituição Federal, assim como do artigo 1723 do Código Civil.
Nesse particular, a principal diferença entre o chamado namoro qualificado e uma união estável, é que enquanto no primeiro os(as) namorados(as) apenas alimentam a expectativa de constituição de uma família no futuro, no segundo, a estrutura familiar já existe por assim os participantes se portarem socialmente, apresentando-se como tal.
Assim, o namoro não será considerado como entidade familiar, pois nele não encontra-se presente o affectio maritalis, que é a efetiva afeição e intenção de constituir família, embora possam estar presentes algumas características como estabilidade, intimidade e convivência.
Conforme Milton de Paulo Carvalho Filho , há necessidade da efetiva constituição de família para a caracterização da união estável e não da sua mera projeção para o futuro, sendo necessária a presença destes elementos, além dos já previstos no artigo 1723 do nosso Código Civil:
“(...) não é qualquer relação amorosa que caracteriza a união estável. Mesmo que celebrada em contrato escrito, pública e duradoura, com relações sexuais, com prole, e, até mesmo, com certo compartilhamento de teto, pode não estar presente o elemento fundamental consistente em desejar constituir família. Assim, o namoro aberto, a 'amizade colorida', o noivado não constituem união estável. É indispensável esse elemento subjetivo para a configuração da união estável. Para Zeno Veloso (op. cit.) é absolutamente necessário que entre os conviventes, emoldurando sua relação de afeto, haja esse elemento espiritual, essa affectio maritalis , a deliberação, a vontade, a determinação, o propósito, enfim, o compromisso pessoal e mútuo de constituir família. A presença ou não deste elemento subjetivo será definida pelo juiz, diante das circunstâncias peculiares de cada caso concreto. Embora tenha o legislador imposto como elemento caracterizador da união estável a mera intenção de constituir família, o certo é que ela só será reconhecida como tal quando, além de os requisitos a) e b) anteriores forem atendidos, a família vier a ser efetivamente constituída - não mediante celebração solene, como se faz no casamento, ou diante do mero objetivo de constituição de família, pois, neste último caso, até mesmo o noivado poderia se enquadrar.(...)”

Do mesmo modo, o STJ também reconhece a existência da figura do namoro qualificado, sem atribuir a ele as consequências – inclusive patrimoniais – cabíveis à união estável. Segundo o Ministro Marco Aurélio Belize, o namoro qualificado tem como único traço distintivo da união estável a ausência de intenção presente de constituir família, pois neste tipo de relacionamento amoroso há somente o planejamento, a projeção de no futuro, constituir um núcleo familiar.
Sob o enfoque do planejamento patrimonial, contudo, a premissa é sempre evitar o risco de que uma eventual decisão judicial reconheça a existência de uma união estável não projetada, e convictamente aceita e, por conta disso, aplique efeitos que poderão levar a uma inesperada partilha de bens, com redução de patrimônio inesperado, uma vez que, caso reconhecida à revelia de contratação de regime de bens específico, será ela norteada pelo da comunhão parcial de bens, com presunção de esforço comum na aquisição do patrimônio durante o período pelo qual ela se deu.
Em vista disso, e independente de querer ou não o casal assumir-se como entidade familiar, como todas as vantagens e ônus que dela decorrem, importante que tal decisão, especialmente a quem tenha algum patrimônio a preservar ou salvaguardar, seja feita de modo organizado e consciente, evitando-se não só futuros litígios, assim como os custos e tempo necessários para resolvê-los.

Por: Eduardo Pires

 

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