Revisão de acordos judiciais trabalhistas: ‘segurança jurídica’ para quem?

A coisa julgada como garantia contra a discricionariedade do Estado-Juiz A discussão sobre os efeitos jurídicos da pandemia do novo coronavírus, causador da enfermidade Covid-19, tem passado pelo cumprimento de acordos judiciais, em particular na Justiça do Trabalho. Mediante apelos a “segurança jurídica”, “bom senso”, “razoabilidade”, entre outras expressões, tem-se defendido a possibilidade de a Justiça Especializada autorizar a revisão de acordos trabalhistas, a partir da provocação do interessado e a despeito da discordância da outra parte litigante.Já há decisões nesse sentido, proferidas em atenção ao “motivo de força maior”.

Entretanto, para a preservação de um mínimo de integridade e coerência do ordenamento jurídico e das premissas fundamentais do Estado Democrático de Direito, a questão exige uma abordagem diferente.
A começar pelo conceito de força maior. Uma determinada empresa pode, por exemplo, apreender a perda de um importante contrato, com impactos significativos em sua saúde financeira, como um evento de “força maior”. Mas para o Direito, em especial para o Direito do Trabalho, a expressão tem um sentido diferente.

O legislador cuidou de conceituar força maior nas relações trabalhistas (art. 501 da CLT). A força maior corresponde ao acontecimento considerado inevitável à vontade do empregador e para cuja realização esse não concorreu, de forma direta ou indireta. É necessário que afete ou seja suscetível de afetar, de maneira substancial, a situação financeira e econômica da empresa. A falta de cautela ou a imprevidência do empregador afasta a força maior.

Há, ainda, uma característica da relação de emprego que é fundamental para a compreensão da força maior: a responsabilidade do empregador quanto aos riscos da atividade econômica (art. 2º da CLT). Uma vez que o empregador exerce o poder de dirigir a prestação pessoal de serviços e organiza os fatores de produção, inclusive a força de trabalho, então lhe cabe arcar com os riscos (e os lucros) da empresa e do modo como é explorada.

O risco da atividade econômica ou do empreendimento afasta a caracterização da força maior na relação de emprego. É por isso que uma crise econômica ou financeira, no mercado, nacional ou mundial, ou na própria empresa, não configura força maior para fins trabalhistas. Retomando o exemplo acima, a perda de importante contrato pela empresa, ainda que acarrete, no extremo, sua falência, está inserida no risco da atividade econômica e não configura força maior.

A previsão legal de que o empregador assume os riscos da atividade econômica torna incompatível com o Direito do Trabalho a teoria da imprevisão. Não há espaço para a incidência, nem mesmo subsidiária, da regra do direito comum sobre o inadimplemento de obrigações em razão de caso fortuito ou força maior (art. 393 do CCB). Pelo mesmo motivo, a cláusula rebus sic stantibus (artigos 478 e 479 do CCB), que autoriza a revisão de obrigações caso haja modificação imprevisível da situação fática presente quando de sua celebração, é inaplicável às relações empregatícias.

Além disso, como é necessário interferir, de modo substancial, na situação econômica ou financeira da empresa, o evento ou o acontecimento – como a atual pandemia –, suscetível de caracterizar força maior, não repercute da mesma forma em todas as empresas. A aplicação do instituto da força maior é, portanto, relativa e depende da realidade de cada dinâmica empresarial.

Caso, de toda forma, haja a configuração da força maior, o legislador especificou seus efeitos nas relações de emprego. Há consequências, por exemplo, no âmbito da jornada de trabalho (art. 61 da CLT) e dos salários (art. 503 da CLT, a ser lido com o art. 7º, VI, da CF), assim como no processo trabalhista (art. 849 da CLT, entre outros).

No âmbito do Direito e do Processo do Trabalho, portanto, os efeitos da força maior são tipificados e restritos, além de coerentes com as características da relação de emprego, como a assunção dos riscos da atividade econômica pelo empregador. Isso significa que a força maior não constitui uma “carta em branco” para a revisão, suspensão ou postergação de obrigações laborais, sobretudo quando reconhecidas em decisões transitadas em julgado.

Mesmo diante de um contexto excepcional (e talvez principalmente nesse caso), é importante a preservação da integridade de princípios do ordenamento jurídico. A Constituição e as normas asseguradoras dos direitos fundamentais não se aplicam apenas em situações de normalidade.

A salvaguarda constitucional da coisa julgada é uma proteção temporal. É uma garantia de que aquilo que foi reconhecido judicialmente será preservado no futuro, inclusive num cenário de força maior. O titular dessa proteção é o cidadão que demandou no Poder Judiciário e teve sua pretensão acolhida, por uma decisão ou um acordo. Mas a garantia da coisa julgada não se opõe apenas à pessoa em face de quem foi proferida a decisão judicial. É também uma proteção contra o próprio Estado-Juiz.

Os princípios e as regras processuais são importantes instrumentos de contenção e controle do poder judicial. Constituem garantias às partes, de modo que seus direitos sejam observados pelo magistrado que conduz o processo. Os princípios e regras processuais não estão à disposição do julgador. E isso vale para a coisa julgada.

Como indicado, diversas expressões têm sido utilizadas em prol da revisão de obrigações trabalhistas decorrentes de acordos judiciais. São noções, no entanto, que, ao contrário do que seu uso parece indicar, não são autoevidentes e realizam muito menos do que prometem. Embora invocadas em defesa da “segurança jurídica”, causam justamente o contrário.

Tais expressões servem a que o julgador decida segundo sua moral, não jurídica, judicialmente travestida de “bom senso”, “confiança’, “razoabilidade” ou até de “senso de justiça”. Elas são utilizadas sem maiores explicitações do seu sentido jurídico ou de seu cabimento como premissa decisória. O resultado é o risco de discricionariedade e arbitrariedades judiciais, que fragmentam a expectativa legítima dos cidadãos de interpretação e aplicação coerente e íntegra do Direito pelo Poder Judiciário.

É significativo que as noções acima sejam invocadas, em regra, para destacar a situação, na pandemia, de apenas um dos lados da relação processual.[3] O discurso de relativização ou revisão de obrigações trabalhistas salienta exclusivamente as necessidades e os possíveis percalços da empresa (ex-)empregadora. É a incorporação injustificada do código da economia na linguagem jurídica – o que, com frequência, é apresentado com a fórmula de que “o Direito não deve ignorar a realidade”. O argumento moral e discricionário do julgador é empenhado na prevalência da razão econômica, em detrimento da razão jurídica.

A outra parte envolvida no processo – a pessoa trabalhadora – fica sujeita, então, à discricionariedade do Estado-juiz, na medida em que o que importa é o “bom senso” do julgador ou o que esse último reputa “razoável”. Ignora-se o fato de que a decisão judicial é proferida entre duas partes litigantes. E uma delas tem, não apenas uma expectativa, mas uma garantia constitucional de que aquela decisão, transitada em julgado (abrangendo, no caso de acordos judiciais, as condições de seu cumprimento) seja cumprida e observada, sobretudo pelo próprio Poder Judiciário.

Como falar na tão mal definida “segurança jurídica” se cada magistrado pode decidir de acordo com seu “bom senso”, seu “senso de justiça”, ou o que considera “razoável”? Como falar em “segurança jurídica” quando um direito fundamental – a garantia da coisa julgada – é relegado? E, por fim, “segurança jurídica” para quem?

O enfrentamento da pandemia do coronavírus coloca aos intérpretes do Direito o desafio de encontrar soluções que não traiam a Constituição nem os direitos fundamentais. No campo do Direito do Trabalho, abre-se um espaço para a criatividade dos atores sociais, por meio de acordos individuais e coletivos, dentro e fora do processo. Trata-se, porém, de conciliação, que pode até mesmo alcançar as condições estipuladas em acordo anterior ou em decisão judicial. Mas o protagonismo cabe às partes, não à discricionariedade do Estado-Juiz.

Fonte: JOTA

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